domingo, 5 de junho de 2011

O Destino e o Feminino, por Liz Greene (1)

Das Ewig Weibliche zeiht uns inan.
O eterno feminino nos acusa.
Goethe


"Ela pode ser encontrada nos lugares velhos, ermos e áridos: charnecas e cumes desmatados e nas entradas de grutas. Nem sempre uma, às vezes, ela é tripla, emergindo da névoa ou envolta nela. Banquo, que, na companhia de Macbeth, deparou-se com ela, exclama:

"What are these?
So withered and so wild In their attire,
That look not Iike th'inhabitants o' the earth, And yet are on't? Live you? or are you aught
That man may question? You seem to understand me, By each at once her choppy finger laying
Upon her skinny lips: You should be women, And yet your beards forbid me to interpret That you are so.
... You can look into the seeds of time,
And say which grain will grow and which will not."*

*Quem são estas? Tão esquálidas e rústicas em suas vestes / Que não se parecem com habitantes da Terra, / No entanto, será que o foram? Vocês vivem? Ou perceberam / Que o homem fará perguntas? Vocês parecem me entender,/ Pois cada uma por sua vez levou o dedo gretado / Aos lábios descarnados; Deveriam ser mulheres, / e, no entanto, suas barbas me impedem de / Considerá-las como tais.... Vocês podem examinar o interior das sementes do tempo, / E dizer qual germinará e qual não.

A cortina abre no primeiro ato de Götterdämmerung, de Wagner, entre um silêncio e uma calma sombrios e ai, agachadas sobre o penhasco defronte à caverna que representa ao mesmo tempo o útero e o túmulo, a passagem ascendente para a vida e a passagem descendente para a morte, estio as altas figuras femininas envoltas numa roupagem escura, como que encapuçadas:

"Vamos rodopiar e cantar;
Mas onde, onde amarraremos a corda?"

Filhas de Nyx, a deusa da Noite, ou de Erda, a Mãe Terra, elas são chamadas Moiras ou Erínias ou Nornas ou Hécate de três faces, assim como são três em forma e aspecto as três fases lunares. A promissora fase crescente, a fértil cheia e a sinistra fase minguante da Lua representam, na imagem mítica, os três aspectos da mulher: a solteira, a esposa fértil e a anciã estéril. Cloto tece o fio, Láquesis medem e Átropos corta-o, e os próprios deuses estão limitados por essas três, por terem sido originados da incipiente Mãe Noite, antes que Zeus e Apoio trouxessem dos céus a revelação do eterno e incorruptível espírito humano.

"A roda (do universo) gira sobre os joelhos da Necessidade e, na parte superior de cada circulo, se encontra uma sereia, que gira com eles, entoando uma só nota ou tom. As oito juntas formam um todo harmônico e, em volta, em intervalos iguais, há um outro grupo de três sereias, cada qual sentada no seu trono: do as Parcas, filhas da Necessidade, que vestem túnicas brancas e usam uma coroa na cabeça "

A intricada visão geométrica do cosmo, de Platão, com a Necessidade e as Parcas entronizadas no centro que tudo governa, encontra eco no Prometeu acorrentado, de Esquilo:

"Coro: Quem dirige o leme, então, da Necessidade?
Prometeu: As Parcas de três aspectos, as inesquecíveis Erínias. Coro: Será Zeus, então, mais fraco em seu poderio do que elas? Prometeu: Nem sequer Ele pode escapar àquilo que foi decretado."

E o filósofo Heráclito, nos Fragmentos cósmicos, declara com menos ambigüidade do que o habitual:

"O Sol não ultrapassará seus limites; se o fizer as Erínias, servas da Justiça, o
desmascararão."

O pensamento grego, segundo diz Russell, está repleto da simbologia do destino. É claro que se pode argumentar que esses sentimentos são expressões de um mundo ou de unia visão de mundo arcaicos, mortos há dois mil anos atrás e prolongados durante a época medieval devido à ignorância com relação ao universo natural, e sobre isso estamos mais bem informados hoje em dia. Num certo sentido, isto é verdade, no entanto uma das mais importantes e inquietantes percepções da psicologia profunda é a revelação de que a consciência mítica e indiferenciada de nossos ancestrais, que animava o mundo natural com imagens de deuses e daimones, não faz parte apenas da história cronológica. Ela pertence também à psique do homem moderno e representa uma camada que, embora estratificada pela consciência crescente e pelo hiper-racionalismo dos últimos dois séculos, continua tão forte quanto era há dois milênios ou mesmo há dez milênios atrás. Talvez ela seja até mais forte agora porque sua única voz é o desprezado mundo de sonhos da infinda, e os íncubos e os súcubos da noite que são mais bem esquecidos na clara luz da manhã. Sabemos, a partir de nosso muito mais sofisticado conhecimento do universo físico, que o sol não é um ser "masculino" e que não do as sensacionais Erínias em forma de serpentes entrançadas que o impedem de ultrapassar seus limites. Pelo menos, o ego sabe disso; o que quer dizer que esta é a única maneira de examiná-lo.

A linguagem do mito é ainda, e sempre foi, a expressão íntima da inarticulada alma humana; e se se aprende a ouvi-la com o coração, então não chega a surpreender que Esquilo, Platão e Heráclito sejam vozes eternas e não meras relíquias de uma era morta e primitiva. Talvez agora, mais do que nunca, seja importante ouvir essas visões poéticas da natureza ordenada do universo, pois temos perigosamente nos distanciado delas. A percepção mítica de um universo governado por uma moral imutável, tanto como pela lei física, está viva e atuante no inconsciente, e assim também estão as Erínias, as "servas da Justiça". O destino, nos textos gregos, é retratado em imagens que nos são pertinentes, do ponto de vista psicológico. Na imaginação arcaica, ele é, naturalmente, aquilo que escreve a lei irrevogável do futuro: começos e fins que são os produtos inevitáveis dessas fontes. Esse processo implica um padrão regular de crescimento, em vez de capricho ou ocorrência fortuitos. São só os limites da consciência humana que nos impedem de perceber todas as implicações de um começo, de maneira que somos incapazes de prever o inevitável fim. O texto gnóstico do século II, o Corpus Hermeticum, expressa isso com bela concisão:

"E, portanto, ambas, a Sorte e a Necessidade, estão atadas uma à outra, por inseparável coesão. A primeira delas, Heimarmenê gera o começo de todas as coisas. A Necessidade compele ao fim de tudo que depende desses princípios. Na esteira de ambas vem a Ordem, que é sua tecedura e trama, e a organização do Tempo para a perfeição de todas as coisas. Pois nada existe sem a fusão intima da Ordem."

Estamos tratando aqui de uma espécie muito particular de destino, que na realidade não diz respeito à predestinação, no sentido comum. Esse destino, que os gregos chamavam Moira, é o "servo da justiça": o que contrabalança ou pune os desvios com relação às leis do desenvolvimento natural. Esse destino pune o transgressor dos limites fixados pela Necessidade.

"Os deuses têm suas províncias por concessão impessoal de Láquesis ou Moira. O mundo, de fato, era desde os primeiros tempos considerado como o reino do Destino e da Lei. Necessidade e Justiça — "necessidade" e "dever" — encontram-se juntas nesta noção primária de Ordem — uma noção que para a representação religiosa grega é elementar e enigmática. "

Para apreciarmos o gosto peculiar de Moira, não podemos prescindir da concepção popular de acontecimentos predeterminados que não tem sentido, mas que nos ocorrem de imprevisto. A fórmula famosa "você vai encontrar um estranho alto e moreno", da leitora da sorte do salão de chá ou da seção de astrologia do jornal, não tem muita substância no sentido profundo de uma ordem moral universal que os gregos entendiam por destino. Essa ordem moral difere muito do significado judeu-cristão de bem e mal, pois não se ocupa dos triviais crimes do ser humano contra seus semelhantes. Para a mente grega — e, quem sabe, para alguma camada profunda e esquecida da nossa própria mente — o pior pecado que o homem poderia cometer não era qualquer um daqueles incluídos mais tarde no catálogo dos vícios mortais do cristianismo. Era, sim, hubris, uma palavra que sugere algo que contém arrogância, vigor, nobreza, esforço heróico, falta de humildade perante os deuses e a inevitabilidade de um fim trágico.

"Antes que a filosofia surgisse, os gregos tinham uma teoria ou opinião a respeito do universo, que pode ser chamada de religiosa ou ética. De acordo com essa teoria, cada pessoa e cada coisa possuía seu lugar ou função designados. Isso não depende da sanção de Zeus, pois ele próprio está sujeito ao mesmo tipo de lei que governa os outros. A teoria está relacionada com a idéia de destino ou necessidade. Ela se aplica, com ênfase, aos corpos celestes. Mas onde há vigor, há a tendência de ultrapassar os limites exatos; daí surge a disputa. Alguma espécie de impessoal e superolímpica lei pune hubris e restaura a ordem eterna que o transgressor buscava vilar. "
Quando uma pessoa é atormentada por hubris, ela tenta ultrapassar os limites do destino fixados para si (que é, implicitamente, o destino representado pelas posições dos corpos celestes no nascimento, visto que a mesma lei impessoal rege tanto o micro quanto o macrocosmos). Assim, ela se esforça para tornar-se divina; e nem mesmo os deuses têm permissão para transgredir a lei natural. A essência da tragédia grega reside no dilema de hubris, que é, ao mesmo tempo, o grande dom do ser humano e seu grande crime. Pois, ao opor-se aos seus limites predestinados, ela dá expressão a um destino heróico, ainda que pela própria natureza dessa tentativa heróica ela seja castigada pelas Erínias.

Os temas da lei natural e da transgressão dos limite; impostos pelo destino poderiam encher, e realmente enchem, volumes de drama, poesia e ficção, sem falar da filosofia. Parece que nós, criaturas humanas curiosas, sempre estivemos preocupados com a difícil questão de saber qual o nosso papel no cosmo: somos predestinados, ou somos livres? Ou estamos fadados a procurar por nossa liberdade, apenas para fracassar? Será melhor, como fizeram Édipo e Prometeu, lutar até os limites extremos de que se é capaz, mesmo que isso provoque um fim trágico, ou será mais sensato viver moderadamente, portar-se com humildade diante dos deuses e morrer com tranqüilidade em seu próprio leito, sem jamais ter provado a glória ou o terror dessa imperdoável transgressão? É evidente que poderia me estender por milhares de páginas sobre este tema, que é o que a maioria dos filósofos fazem. Já que não sou filósofa, em vez disso, vou concentrar minha atenção sobre o fato interessante de que as "servas da Justiça", quer se as encontre na mitologia ou na poesia, são sempre do gênero feminino.

(continua...)

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