Talvez uma das razões por que existe uma inevitável associação entre o destino e o feminino seja a inexorável experiência de nossos corpos mortais. O ventre que nos gera, e a mãe a quem abrimos nossos olhos pela primeira vez, é, no princípio, o Inundo inteiro e o único árbitro da vida e da morte. Enquanto experiência psíquica direta, o pai é, na melhor das hipóteses, uma conjetura, mas a mie é o fato da vida primário e mais real. Nossos corpos estão em harmonia com os corpos de nossas mães durante a gestação que precede qualquer individualidade independente. Se não temos memória do estado intra-uterino e das contorções do parto, nossos corpos tem, e também a psique inconsciente. Tudo que se relaciona com o corpo pertence, pois, ao mundo da mãe — nossa hereditariedade, nossas experiências de dor e prazer físicos e até mesmo nossa morte. Assim como não conseguimos nos lembrar do tempo em que ainda não existíamos, simples ovo no ovário materno, também não conseguimos imaginar o tempo em que deixaremos de existir, como se o lugar de saída e o lugar de regresso fossem o mesmo. O mito sempre ligou o feminino com a terra, com a carne e com os processos de nascimento e de morte. O corpo em que uma pessoa vive seu período de tempo devido provém do corpo da mãe, e essas características e limitações inerentes a nossa herança física são experienciadas como destino: o que está escrito nos hieróglifos do código genético que se estende até eras atrás. O legado físico dos antepassados constitui o destino do corpo e, embora a cirurgia plástica possa modificar o formato de um nariz ou corrigir uma arcada dentária, mesmo assim nos contam que vamos herdar as doenças de nossos pais, suas predisposições à longevidade ou à ausência dela, suas alergias, seus apetites, seus rostos e suas estruturas ósseas.
Assim, o destino é imaginado como feminino porquanto é experienciado no corpo, e as predisposições inerentes ao corpo não podem ser alteradas malgrado a consciência que habita a carne — assim como Zeus não pode, em última análise, alterar Moira. Os impulsos instintivos de uma espécie constituem também o domínio de Moira, pois estes são também inerentes à matéria e, ainda que não sejam exclusivos de uma ou de outra família, são universais no que diz respeito ao género humano. É como se não pudéssemos infringir aquilo que em nós representa a natureza e que pertence à espécie — por mais que o reprimamos ou o alimentemos com cultura. Nesse sentido Freud, malgrado ele próprio, aparece como um dos grandes animadores do destino enquanto instinto, porque foi compelido a reconhecer a força dos instintos como modeladora do destino humano. O instinto de procriar, diferenciado daquilo a que chamamos de amor, existe em todas as espécies vivas e o fato de que opera como uma força do destino pode ser observado nos encontros sexuais compulsivos e nas suas conseqüências que virtualmente pontuam toda vida humana. Não é de se estranhar que os povos nórdicos igualassem o destino aos órgãos genitais. Da mesma forma, o instinto de agressão existe em todos nós e a história da guerra, que eclode, não obstante nossas melhores intenções, é testemunha da "fatalidade" desse instinto.
A alma também é representada como feminina, e a grande obra poética de Dante em louvor à sua Beatriz morta ergue-se como um dos nossos mais impressionantes testemunhos do poder do feminino em afastar o homem da vida mundana e alçá-lo às alturas e profundezas de seu ser interior. Jung tem muita coisa a dizer sobre a alma como anima, a parte feminina subjetiva que pode levar um homem tanto aos tormentos do inferno como aos êxtases do céu, acendendo o fogo de sua vida criativa e individual. Aqui, o destino parece provir de dentro, através das paixões, da imaginação e da incurável aspiração mística. Não importa se é uma mulher de verdade que desempenha esta função na vida de um homem ou não, apesar disso a alma irá empurrá-la na direção do destino dele. Essa alma estabelece limites, também; ela não haverá de permitir que ele voe alto demais e das maldições das histórias de fadas são tarefas altamente ritualizadas. Somente a vontade não pode fazer nada. Até mesmo onde a inteligência serve como um meio de abordagem, ela deve estar associada ao ritmo do tempo e ao auxílio de fatores estranhos e muitas vezes mágicos. Freqüentemente, o socorro vem dessas mesmas ignóbeis fadas, ou de seus lacaios, que lançaram o feitiço antes. Ora é o coração que opera a transformação, assim como o amor da Bela transforma a sua Fera; ora é a passagem do tempo, como é o caso da Bela Adormecida. Outras vezes, o herói deve fazer, desesperadamente, uma longa e cansativa viagem até o fim do mundo, cercado pelas trevas e pelo desespero, a fim de encontrar o objeto milagroso que irá salvar o reino. No entanto, a solução do feitiço ou maldição depende de outras faculdades que não as racionais, e nenhuma solução pode dar certo sem o secreto conluio das fadas ou das próprias parcas. Isso sugere um outro mistério sobre nossa face feminina do destino; embora ela possa se contrapor à omissão ou punir e transgressão da lei natural, ainda assim age nas trevas ocultas para entrar em contato com a vontade alienada do homem, antes que o rompimento aumente demais e se torne premente um desfecho trágico. Os temas dos contos de fadas são mais modestos e aparentemente mais mundanos do que as gloriosas representações teatrais das grandes sagas míticas populares. Todavia, em alguns aspectos, eles têm mais importância para nós por serem mais acessíveis, exuberantes, imaturos e mais próximos da vida comum. E eles sugerem, no ponto onde o mito falha, que seria possível construir uma ponte entre o homem e Moira, se respeito, esforço e ritos propiciatórios adequados forem oferecidos.
Inúmeros exploradores de caminhos inexplorados da psique tentaram entender o fato curioso de que o ser humano, esbarrando de leve nos profundos impulsos subjetivos que representam a sua necessidade, dá ao seu destino um nome e um rosto de mulher. O mais importante desses investigadores é Jung, que escreveu longamente, em vários volumes de suas Obras reunidas, sobre o destino tal como ele o sentiu na sua própria vida e nas vidas de seus pacientes. As vezes, ele se refere ao instinto como uma força compulsiva e dá a impressão de equipará-lo a uma espécie de destino biológico ou natural: o vôo do ganso selvagem é o seu destino, da mesma forma que a erupção da semente em muda, rebento, folha, flor e fruto. Assim também é o "instinto" de individuação, que leva um homem a tornar-se ele mesmo. Destino, natureza e finalidade são aqui uma só e mesma coisa. Meu destino é o que sou, e o que sou é também a razão por que sou e aquilo que me acontece.
Jung também escreveu sobre o espectro do instinto e do arquétipo, o primeiro como o determinante do comportamento físico ou natural, o último como o determinante da percepção e da experiência psíquicas. Ou, expressando de outra forma, a imagem arquetípica — tal como a imagem das três Parcas — representa a experiência ou percepção psíquica do esquema instintivo, encarnado em figuras que são numinosas ou divinas.
Os instintos são equivalentes muito próximos dos arquétipos — tão próximos, na verdade, que existe uma boa razão para supor que os arquétipos sejam as imagens inconscientes dos próprios instintos; noutras palavras, eles são padrões do comportamento instintivo.
Instinto e arquétipo são, portanto, dois pólos do mesmo dinamismo. O instinto acha-se incluído em, ou é a força ativa que se expressa através de todo movimento de cada célula de nossos organismos físicos: a vontade da natureza que governa o desenvolvimento ordenado e inteligente e a perpetuação da vida. Mas o arquétipo, revestido em sua imagem arquetípica, é a experiência psíquica desse instinto, a força ativa que se expressa através de todo movimento esboçado por cada fantasia, por cada sentimento e por cada vôo da alma. Essa imagem que é mais antiga que o mais antigo dos deuses, a face primordial de Moira, é a percepção psíquica da lei imutável, inerente à vida. Somos aquinhoados com nossa sorte, e nada mais. Jung chegou perto de um mistério que o intelecto tem grande dificuldade em compreender: a união do subjetivo com o objetivo, do corpo e da psique, do indivíduo com o mundo, do fato exterior com a imagem subjetiva. Ele fala do arquétipo, por um lado, como uma modalidade herdada de funcionamento, um padrão inato de comportamento semelhante àquele que podemos observar em todos os reinos da natureza. Mas, por outro lado, ele é alguma coisa mais também.
Este aspecto do arquétipo é o aspecto biológico. . . No entanto, o quadro muda imediatamente quando olhado de dentro, isto é, de dentro do domínio da psique subjetiva. Aqui, o arquétipo se apresenta como numinoso, ou seja, aparece como uma experiência de importância fundamental. Sempre que se reveste com os símbolos apropriados, o que nem sempre é o caso, ele coloca a pessoa num estado de possessão, cujas conseqüências podem ser imprevisíveis.
São justamente essas "conseqüências imprevisíveis" que parecem se introduzir na vida como acontecimentos predestinados de fora. Eis então a doença da paralisia, o acidente estranhamente acontecido na hora marcada, o sucesso inesperado, a relação amorosa compulsiva, o ínfimo erro que resulta na subversão de todo um sistema de vida. Todavia, tem-se a impressão de que a fonte desse poder não vem de fora, ou melhor, não unicamente de fora; Moira também se encontra no lado de dentro.
Pode-se ler, na obra de Jung, uma relação cada vez mais amplamente formulada entre o destino e o inconsciente.
"Meu destino" significa uma vontade demoníaca com relação precisamente a esse destino — uma vontade que não coincide necessariamente com a minha própria (a vontade do ego). Quando ela é oposta ao ego, é difícil não sentir um certo "poder" nela, seja ele divino ou diabólico. O homem que se submete ao seu destino chama-o de a vontade de Deus; o homem que trava um desesperado e extenuante combate está mais apto a ver o diabo nele.
Traça-se também uma relação ampliada entre essa "vontade não necessariamente coincidente com a minha própria" e a Individualidade, o arquétipo central da "ordem" que se situa no âmago do desenvolvimento individual. Destino, natureza, matéria, mundo, corpo e inconsciente — são esses os fios entrelaçados que se tecem no tear de Moira, que rege o reino da matéria, da essência e dos impulsos instintivos da psique inconsciente, da qual o ego é um produto da nossa época.
A raiz indo-européia mer, mor, significa "morrer". Dela também provém os termos mors, em latim, e moros ("sorte"), em grego e, possivelmente, Moira, a deusa do destino. As Nornas que se reúnem sob o pó do mundo são personificações familiares do destino, haja vista Cloto, Láquesis e Átropos. Com os celtas, a concepção das Parcas talvez tenha se deslocado para a de matres e matronae, que eram consideradas divinas pelos teutos... Não será possível que ela retroceda à grande imagem da mãe primordial, que era outrora nosso único mundo e que depois se tornou o símbolo do mundo todo?
Sobre as representações simbólicas do arquétipo da Mãe, Jung escreve o seguinte:
Todos estes símbolos podem ter um significado positivo e favorável ou um significado negativo e desfavorável... Vemos um aspecto ambivalente nas deusas do destino. . . Símbolos do mal são a bruxa, o dragão (ou qualquer animal voraz ou rastejante, tal como um grande peixe ou uma serpente), o túmulo, o sarcófago, a água profunda, a morte, os pesadelos e os duendes. . . O lugar da transformação mágica e de renascimento, juntamente com o mundo subterrâneo e seus habitantes, são presididos pela Mãe. No aspecto negativo, o arquétipo da Mãe pode conotar algo secreto, oculto, sombrio; o abismo, o mundo dos mortos, qualquer coisa que devore, seduza ou envenene, isso tudo é terrificante e inevitável como o destino.
Cito Jung literalmente, pois creio que essas passagens são fundamentais para uma compreensão do sentimento de fatalidade ou de compulsividade irracional que tantas vezes acompanha dificuldades emocionais e os acontecimentos que essas erupções ou abalos precipitam. Depressão, apatia e enfermidade talvez sejam máscaras que as Erínias utilizam. desnecessário dizer que a relação de uma pessoa com a própria mãe está, sem dúvida, significativamente associada ao seu próprio sentimento de escolha e de liberdade subjetiva na vida adulta, pois quanto mais magnânima e sinistra é a mãe, mais tememos o destino. A mãe, porém, é também a Mãe, que aqui parece, em parte, encarnar o inconsciente em seu disfarce de "origens", "útero" ou "profundidades desconhecidas". Não há resposta para a discussão sobre se é o homem que formula suas imagens psíquicas de deusa, serpente, oceano e sarcófago, devido à sua vaga memória corporal do mar de águas uterinas, do serpeante cordão umbilical que dá a vida e, no entanto, pode estrangular, da escuridão tumular e das contrações do parto, do bem-estar vital que propicia a amamentação no peito da mãe; ou se experimenta prazer ou terror, alívio ou compulsão, desejo ou repulsa, e exagera uma "mera" experiência biológica com imagens divinas devido à figura arquetípica ou numinosa, da qual a experiência biológica é apenas uma manifestação concreta. Este, é claro, o velho dilema espírito-matéria: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Será que inventamos os deuses porque temos necessidade de investir significado nos caprichos e nas vicissitudes da vida física, ou será que a vida física é vivenciada como intrinsecamente significativa porque os deuses existem? É evidente que não sei responder a essa questão. Jung, certamente, em seus esforços para se expressar com clareza e exatidão, do ponto de vista psicológico, a respeito dessas águas não navegadas, procurou ficar no meio-termo: ambos são aspectos de uma realidade e não podem ser separados. Se o instinto é uma extremidade do espectro que abrange também um nível arquetípico ou "espiritual", então o destino não é somente o destino do corpo, mas da alma também. A experiência do poder e da natureza relacionada com a vida e a morte da mãe individual acha-se associada na psique com a numinosidade de Moira, divina criadora de vida e de morte. Talvez tudo o que podemos dizer é que existe um elo.
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