Hades, o deus da morte, preside o julgamento
sobre as ações de um homem depois que este morre.
O deus da morte, Hades, não se esquecerá
das matanças e das dívidas de sangue.
Ésquilo
Se desejamos abordar os símbolos astrológicos por meio da ampliação de outras imagens e de símbolos, e não por meio de uma definição concreta, então é hora de darmos uma olhada nas contribuições do mito a respeito de Hades-Plutão e sobre o tema dos regentes do inferno em geral. O senhor grego do inferno era, originalmente, conhecido como Hades; o epíteto "Plutão", que significa "riquezas", é uma denominação posterior que os romanos usavam então para descrevê-lo. James Hillman é esclarecedor sobre essa mudança de nomes: É especialmente importante reconhecer Plutão, em nossas eufêmicas referências ao inconsciente, como o doador do todo, um depósito de riquezas abril). dantes, um lugar não de fixação no tormento, mas sim um lugar, desde que corretamente propiciado, que oferece imensa abundância. O eufemismo é uma maneira de esconder a ansiedade. Na antiguidade, Plutão ("riquezas") era usado como um nome eufemístico para ocultar as profundezas assustadoras do Hades.
Com praticamente a mesma disposição, as Erínias, as terríveis vingadoras da Mãe, eram chamadas Eumênides, "as amáveis damas".
Nós astrólogos também usamos eufemismos. "Transformação" é uma palavra sonora, com fragrância de numinosidade e profunda intenção psíquica, e mais encorajadora para o cliente que possui um trânsito ou progressão envolvendo Plutão. Entretanto é, infelizmente, o tipo de palavra a que gostamos de recorrer quando o significado de um planeta é vago ou meramente intelectual, ou quando a experiência prognosticada no horóscopo augura crise e sofrimento para o cliente. Não é nada fácil observar uma outra pessoa passando por um sofrimento necessário. Primeiro, porque nossa compaixão protesta que esse sofrimento não deve ser necessário, pois nossos valores sentimentais muitas vezes não estão de acordo com a lei implacável de Plutão. Segundo, porque nos vemos espelhados na incipiente desintegração ou perda do outro. É particularmente difícil lidar com Plutão a menos que se tenha alguma confiança no destino; mas, como se pode confiar nele, a não ser que se tenha passado algum tempo pelo desespero, pela escuridão, a raiva e a impotência, descobrindo o que mantém a vida quando o ego já não tem mais condições de fazer suas escolhas habituais? Jamais encontrei qualquer coisa agradável ou divertida nos trânsitos e progressões de Plutão, por mais psicologicamente esclarecido que seja o cliente. O discernimento não pode poupar o sofrimento, embora possa evitar o sofrimento irracional. É óbvio que muito depende da perspicácia da pessoa, e também da condição de Plutão no horóscopo de nascimento. Se não houver nenhum discernimento, é de se esperar que o trânsito ou progressão passe sem que uma excessiva perturbação fique registrada na consciência, se a pessoa for bastante embotada. Algumas vezes, ocorre uma enorme liberação de energia que acompanha os movimentos de Plutão: coisas que estavam há muito tempo adormecidas ou que morreram prematuramente na vida são ressuscitadas e irrompem de repente. Outras vezes, são as paixões que criam essa irrupção, e essa liberação de energia pode ser imensamente criativa. Contudo, esse tipo de experiência, apesar de tardiamente se perceber o seu valor, é frequentemente doloroso, frustrante, desconcertante, desorientador e assustador, e raramente acontece sem alguma espécie de sacrifício ou perda, voluntária ou involuntária, ou sem alguma espécie de confrontação com aquilo que é mais brutal e "injusto" na vida. Até mesmo os corajosos escorpianos, que são regidos por Plutão e, por isso, possuem um pressentimento inato da deusa Necessidade e da inevitabilidade das origens e términos erigidos sobre os cadáveres de desmembrados pretéritos, não estão imunes ao receio natural do ego com relação àquilo que é excessivamente poderoso e não pode ser aplacado nem pela vontade nem pela razão. Morte e paixão deixam mudanças irrevogáveis atrás de si, seja num nível físico ou psíquico, e o que findou não pode ser reposto de novo.
Às vezes pode-se ter a impressão de que a lei do destino concede algum bem positivo aos homens; no entanto, do conjunto de suas funções, não pode haver dúvida de que seu caráter não é positivo, senão negativo. Ela estabelece uma fronteira para limitar a duração, uma catástrofe para limitar a prosperidade, a morte para limitar a vida. Catástrofe, cessação, limitação, todas as formas de "até aqui, e não mais além", são formas de morte. E a morte é ela própria o sentido primordial do destino. Sempre que o nome de Moira é pronunciado, o primeiro pensamento que surge é o da morte, e é na inevitabilidade da morte que a ideia de Moira está enraizada.
Embora se possa saber que a vida retornará revigorada em uma nova forma, mais rica e mais vital, não obstante, a coisa que atingiu seu término designado sofre na morte, e ela mesma jamais há de voltar à vida. Angústia, medo e profunda aflição quase sempre acompanham essas mortes e, seja qual for a "parte" de nós que passa por essa transição, nós a vivenciamos no íntimo como se fosse a totalidade de nós se estivermos inteiramente conscientes dela, identificando-nos com ela e com seu sofrimento: eis o inevitável efeito secundário de qualquer alteração profunda na psique. A mente discorre animadamente sobre transformação e renovação, mas alguma coisa no fundo ainda questiona: O que acontecerá se não houver renovação? Como poderei confiar em algo que não posso ver nem compreendo? O que fiz para merecer um destino desses: onde foi que falhei? E se o vazio absoluto simplesmente durar para sempre? Qualquer experiência de depressão profunda traz consigo a forte sensação de que nada irá mudar jamais. Por conseguinte, talvez nos fosse apropriado, juntamente com afirmações animadoras sobre a potencialidade futura inerente aos movimentos de Plutão, reconhecer também a marca de uma iniciação no irrevogável e de uma necessidade de reverenciar legitimamente a depressão e o desespero. Empatia e respeito pelo processo de morte de outrem, literal ou metafórico, é uma necessidade presente com Plutão, ainda que este geralmente não seja o dom do conselheiro astrológico mais uraniano. A morte deixa todo mundo constrangido; mesmo na profissão médica, a questão de contar a uma pessoa, ou à família dela, que ela está morrendo é um assunto desagradável, e não é de surpreender que muitos médicos estejam mal preparados para esse confronto. E o caso não é diferente num nível interno, pois o cheiro da morte íntima desenha os próprios temores de uma pessoa.
O mito nos informa que Hades é o senhor das profundezas, o deus das coisas invisíveis. Ele é irmão de Zeus, tendo portanto a mesma posição que o regente do céu. Ele é tenebroso, mas um parceiro tão poderoso quanto o todo-misericordioso pai do céu. De fato, ele ocupa a posição mais elevada, visto que sua lei é imutável ao passo que a de Zeus pode ser contradita. A Hades não foram, realmente, ofertados altares ou templos onde pudesse ser cultuado; simplesmente se reconhecia que a morte está em toda a parte da vida, e que cada coisa viva contém dentro de seu corpo mortal seu próprio altar, sua particular e inevitável semente de morte que nasce simultaneamente com vida física. Hades não pode ser visto pelos homens no mundo de cima, pois usa um elmo que o toma invisível. Esta é a conexão oculta, o destino secreto, o "mundo interior daquilo que é dado". Não podemos perceber Hades, mas ele está presente em todas as ocasiões, sendo inerente à formação de cada pensamento, sentimento, inspiração, relacionamento ou ato criativo, conforme seu predeterminado e inevitável fim.
A figura masculina de Hades como senhor do inferno é uma formulação relativamente tardia. O caos primordial do qual a vida emerge e ao qual retorna pertencia, no princípio, à Grande Mãe ou á deusa Nyx. Todos os habitantes das profundezas — Sorte, Velhice, Morte, Assassinato, Incontinência, Sono, Sonhos, Discórdia, Nêmesis, as Erínias e as Moiras, as Górgonas e as Lâmias - originam-se do ventre dela. Uma outra de suas faces, a antiga Hécate de três cabeças, deusa da sorte, magia, parto, bruxaria e da rotação eterna da Lua flutuante, é subjuga. da por uma cultura mais patriarcal e permanece apenas na figura de Cérbero, o cio tricéfalo que guarda a margem mais distante do Estige. As imagens mais primitivas da deusa são as de uma Mãe fálica, uma divindade autofecundante que dá à luz as Moiras sem o esperma masculino.
No fim, essa deusa desaparece nas suas próprias profundezas, e o poder fálico é representado por uma divindade masculina: Hades. Apesar de ser um deus, ele é o filho das trevas, criado e executor da Mãe invisível. No mito sumeriano, que antecede o mito grego clássico de muitos séculos, é a grande deusa Eresquigal quem rege o reino dos mortos. Seu nome significa "Senhora da Grande Região Inferior", e é sobretudo sua imagem que, acho, poderá nos ajudar a ampliar o planeta Plutão a fim de o entendermos melhor. Eresquigal controla guardiães e lacaios, como também um vizir chamado Namtar, que quer dizer "destino"; estes, porém, são os servos dela, que cumprem as suas ordens.
Pelo material a seguir sobre Eresquigal sou grata a Sylvia Brinton Perera que, em seu livro, Declínio da deusa, nos oferece uma ampla e fascinante interpretação dessa deusa arcaica do inferno. A relevância desse material é suficiente para confirmar minha intuição de que no Plutão astrológico estamos frente a frente com algo feminino, primordial e matriarcal. Quando a deusa Inanna, a rainha sumeriana do céu (a primitiva forma de Istar, Afrodite e Vênus), desce ao reino de sua irmã Eresquigal, a Senhora da Grande Região Inferior trata sua brilhante e bela irmã de acordo com as leis e ritos válidos para qualquer um que entre no reino: Inanna é levada "nua e de joelhos", enquanto suas roupas e insígnias reais são ritualmente rasgadas em cada um dos sete portais do inferno. Esse rito de entrada é um processo que tenho constatado, em muitas ocasiões, ser concomitante aos trânsitos e progressões de Plutão - a perda gradual de tudo o que se usou previamente para definir a identidade da pessoa, e o "pôr-se de joelhos" em sinal de humilhação, humilde e eventual aceitação de algo maior e mais poderoso do que a própria pessoa. A Sra. Perera escreve a partir de sua experiência como analista junguiana, enfocando a jornada iniciatória de mulheres que sofreram uma dissociação de seu próprio centro feminino. O que estou escrevendo aqui também parte da minha experiência como analista e igualmente da minha experiência como astróloga; e tenho notado que este declínio, com sua perda de características, adereços e afetos, parece ocorrer tanto em homens como em mulheres sob os trânsitos e progressões de Plutão.
Existe muito das Górgonas e da negra Deméter nela: no seu poder e terror, nas sanguessugas de sua cabeça, nos seus olhos glaciais, na sua íntima relação com o não-ser e com o destino... O domínio de Eresquigal, quando estamos sob ele, parece ilimitado, irracional, primordial e totalmente indiferente, até mesmo destrutivo, à pessoa. Ele contém uma energia que começamos a entender através do estudo dos buracos negros e da desintegração dos elementos, assim como através dos processos de fermentação, câncer, decomposição e das atividades inferiores do cérebro que regulam os movimentos peristálticos, a menstruação, a gravidez e outras formas da vida corporal a que temos que nos submeter. o lado destrutivo-transformador da vontade cósmica. Eresquigal é semelhante a Kali, que através do tempo e do sofrimento "implaca¬velmente reduz a cinzas todas as distinções no seu fogo indiscriminado" — e, no entanto, propaga vida nova... Irreverenciadas, as forças de Eresquigal são sentidas como depressão e como uma agonia insondável de impotência e de inutilidade — desejo inaceitável e energia transformadora-destrutiva; autonomia inaceitável (a necessidade de separação e de autoafirmação) dividida, voltada para dentro, devorando o sentimento individual de potência e valor da vontade individual.
Não consigo me lembrar de nenhuma descrição melhor que esta a respeito da qualidade emocional de Plutão.
Gostaria agora de retornar ao Hades, o desmedido falo da Mãe. Sempre que o mito retrata a entrada dele no mundo da superfície, ele é persistentemente mostrado representando um tema: o estupro. Isso sugere algo mais sobre a nossa experiência do planeta Plutão. Sua intrusão na consciência dá a impressão de ser uma violação, e nós, a exemplo de Perséfone, a virgem do mito, somos impotentes para resistir. Onde Plutão é encontrado, há amiúde um sentimento de penetração violenta, indesejado porém inevitável, de algum modo, necessário ao equilíbrio e desenvolvimento da pessoa — embora seja possível não vê-lo assim na ocasião. Eresquigal, também, representa uma espécie de estuprador para os que voltam seus rostos contra ela:
Para a consciência matriarcal ela representa o continuum em que estados diferentes são simplesmente experimentados como transformações de energia. Para o patriarcado a morte torna-se uma violação da vida, uma violência a ser temida e controlada, tanto quanto possível, com a distância e a ordem moral.
O mito do estupro de Perséfone é importante também para a compreensão de Plutão, pois a inocência virginal dela é que atrai o desejo do tenebroso senhor do inferno. Perséfone é uma deusa da primavera, a face ainda não violada de sua mãe Deméter, senhora da colheita. Ela é a virgem arquetípica, o solo fértil ainda não semeado; seu símbolo é a Lua crescente, que promete realização futura, mas que se encontra eternamente num estado de potencialidade. Ela está estreitamente ligada à sua mãe deusa da terra, aos cinco sentidos e ao mundo da forma. Também reflete a superfície brilhante da vida que promete alegrias futuras através dos olhos da juventude pura. Dessa forma, ela constitui uma imagem de um tipo particular de percepção e perspectiva humanas, cheias de possibilidades mas ainda informes.
O incontestável vínculo entre esse par de deusas, mãe e filha, sugere algo da divina unidade entre a mãe e o bebê, no admiravelmente inocente e protegido mundo da primeira infância onde até então não existe separação, solidão, conflito ou medo. Esse é o mundo antes da Queda, antes que o cordão umbilical seja cortado, e nele a morte não existe pois ainda não existe vida individual. Partes de nós podem permanecer nesse urobórico amplexo até um período posterior da vida, pois Perséfone não é apenas uma imagem da juventude cronológica, nem da virgindade, no sentido literal. A medida que nosso conhecimento e habilidades exteriores vão se tornando cada vez mais sofisticados, também vamos esquecendo esses ritos e rituais que facilitam a separação entre o jovem e a sua mãe na puberdade. A cultura da tribo primitiva com suas elaboradas cerimônias para anunciar o advento da vida adulta e da responsabilidade, se perdeu para nós no Ocidente há muito tempo. Assim sendo, ficamos como senis Perséfones colhendo flores esperançosamente, até que algum crítico trânsito ou progressão de Plutão apareça. Perséfone, apesar de seu nome — estranhamente — significar "portadora de destruição", é insensível à vida. Seu rapto é cruel, mas governado pela necessidade; e ela própria o invoca secretamente, colhendo a estranha flor da morte que Hades plantou na campina para o deslumbramento dela. E o roubo da flor que prenuncia a abertura da terra debaixo dela e a chegada do senhor das trevas no seu coche puxado por negros cavalos.
A questão da flor parece uma coisa tão pequena, mas creio que o processo de Plutão funciona dessa maneira. Fazendo-se um retrospecto, é possível perceber que é uma pequena coisa o que faz com que os portões sejam abertos. Perséfone é conivente com o seu destino, mesmo ao comer voluntariamente a romã, o fruto do inferno, que é um símbolo de fertilidade devido à sua profusão de sementes. Ela é uma imagem daquele aspecto da pessoa que, por mais aterrorizada, ainda assim busca a união que é um estupro e uma aniquilação. Nos mistérios órficos, Perséfone dá ao seu senhor um filho no inferno, assim como Eresquigal, no mito sumeriano, dá à luz uma criança depois de ter destruído sua irmã Inanna e pendurá-la nua numa estaca até apodrecer. O filho de Perséfone é Dioniso, a contraparte infernal do brilhante redentor do céu, a quem o cristianismo deu forma na figura de Jesus Cristo. Ambos são nascidos de virgens, através de pais divinos. Mas Dioniso, que redime através do êxtase erótico, é um rilho muito mais ambíguo. Parece que o mito expressa algo sobre a fertilidade de qualquer encontro com Plutão; ele é cheio de fruto. Uma sensação enriquecida da vitalidade e da sensualidade do corpo é, certamente, uma faceta frequente do fruto de Plutão. Talvez haja outros filhos originários dessa experiência de arrebatamento: uma perspectiva nova, mais profunda e mais ampla, uma descoberta nova dos recursos íntimos, uma compreensão mais aguçada da própria finalidade e da autonomia pessoal. Todas essas coisas devem ser pagas, por meio da ruptura do hímen psíquico que nos protege do começo ao fim de nossa inocência.
Essas profundezas são realmente assustadoras. Não é de surpreender que usemos eufemismos, nem tampouco que Escorpião, o signo de Plutão, sempre tenha tido uma reputação tão duvidosa. Pode ser um tanto complicado encontrar as palavras certas para o cliente, isso sem falar de si mesmo, já que Plutão se move lentamente para uma prolongada conjunção como Sol, a Lua, o ascendente e Vênus, indicando que os salões de Hades irão abrir suas portas para receber o relutante convidado a seu próprio e inconsciente pedido.
Em seguida, existe a questão de saber o que há lá embaixo. O mito oferece uma descrição geográfica notavelmente precisa da Grande Região Inferior. O reino de Eresquigal possui sete portões e uma estaca que serve para dependurar o visitante. Paisagens desse tipo são paisagens subjetivas. Fazem parte de um "lugar" aonde "vamos" através de humores, sentimentos, sonhos e fantasias. Primeiro, poderíamos examinar as entradas. Geralmente são grutas, fissuras, fendas na terra e crateras de vulcões. Através dos buracos e frestas da consciência, através das angústias e da erupções emocionais e incontroláveis de uma pessoa e de suas fobias e fantasias compulsivas em que o ego é inundado por alguma coisa "diferente", vai-se caindo, cada vez mais despido de pretensões em cada uma das entradas. Isso é conhecido no mundo analítico como abaissement du niveau mental, o rebaixamento do limiar de consciência que ocorre através dos sonhos, das fantasias, do delírio, da paixão, até mesmo de deslizes verbais e de inexplicáveis omissões e amnésia. As entradas prediletas de Plutão são, creio, os vulcões onde algum evento aparentemente insignificante desencadeia uma grande torrente de estranha e, muitas vezes, terrível ira, ciúme, ódio, medo ou fúria homicida, que revela que não somos tão civilizados quanto parecemos. A criatura indomada que irrompe é, assim como Eresquigal, cheia de rancor vingativo por mágoas que nem sequer sabíamos que tínhamos. O vulcão tem quase sempre uma posição determinada onde quer que Plutão se encontre no horóscopo.
Os gregos, a exemplo dos sumerianos, visionaram um rito elaborado de ingresso ao inferno; no entanto, o relato mítico deles é diferente. As almas dos mortos devem atravessar o rio Estige, transportadas pelo antigo barqueiro Caronte que exige uma moeda em troca. Aqui, da mesma forma como nos portões de Eresquigal, algo deve ser dado, algo de valor que a própria pessoa possui. O dinheiro é uma das imagens de valor, de riqueza, de identidade e propriedade do ego. O que acumulamos, ao que parece, deve ser distribuído durante a descida - as insígnias reais e as roupas com as quais nos identificamos, e o nosso habitual senso de valor, nossa inatacável autoestima, nosso grande apreço. O sentimento de inutilidade, de falsidade e de repulsa à própria nulidade, de decepção com a vacuidade das pompas que tanto significado tinham, é algo que tenho repetidas vezes ouvido expressar aqueles que estão passando pelos trânsitos e progressões de Plutão. Isso não se limita apenas aos assim chamados "maus" aspectos, senão que também se aplica aos trígonos e sextis. Dá a impressão de que a aceitação desse sentimento de ser despido, humilhado e vazio é uma precondição necessária para o acólito nos portões de acesso.
A seguir, citamos o sonho de um homem que veio em busca de uma leitura do horóscopo quando o transitório Plutão estava fazendo uma longa conjunção com sua casa do Sol, em Libra, situada na décima casa. Ele era um bem-sucedido editor de manuais científicos, dono de uma companhia internacional que lhe fornecia uma considerável renda e um lugar respeitado na sociedade. Com essa persona ele sempre se identificara, pois ela lhe dava uma sensação de realização e de importância. Que isso também lhe fornecia um meio de realizar o sonho de sua mãe de ter um filho brilhante e bem-sucedido ainda não se dela conta, como um motivo primário na escolha de sua carreira, embora muitos astrólogos pudessem encarar com reserva a unidade de identidade entre mãe e filho que o sol na décima casa sugere. Ele me contou seu sonho no decorrer da interpretação do mapa astral, porque me referia algumas das imagens e sentimentos relacionados com Plutão e que mencionei acima: morte, apatia, depressão, isolamento e sepultamento.
Sonho que morri e que agora estou esperando algum tipo de renascimento ou de ressurreição. Em lugar da cabeça, tenho um crânio descarnado entre os ombros. É horrível sentir esse crânio. Estou morto, apodrecido, inaceitável. Num quarto à direita, todos os livros e as revistas que publiquei são exibidos como troféus em caixas com tampo de vidro. Alguns amigos vêm me convidar para jantar, mas ficam assustados diante da visão de meu crânio. Tento explicar que estou morto, mas que uma outra vida me aguarda. Todavia, eles apenas mostram repugnância e me deixam sozinho. Num outro quarto, meus funerais estão em andamento. Minha mãe chora convulsivamente sobre meu caixão. Ela não pode me ver, ou à parte de mim que subsiste. Para ela, eu estou completamente morto.
Esse sonho, na verdade, dispensa interpretação. Ele se descreve bastante adequadamente como uma imagem subjetiva da experiência de Plutão e como um comentário profundo sobre o significado desse período na vida de meu cliente. Apesar de ter achado o sonho incômodo e perturbador, ainda assim ele disse que tinha ficado com uma sensação de confiança durante um período de grande depressão e desespero. Em resumo, o sonho lhe trouxe — e ele não estava se submetendo a nenhuma forma de psicoterapia, mas chegou sozinho e aos poucos à compreensão disso — o pressentimento de que sua depressão era necessária de algum modo que ele não conseguia entender profundamente. A imagem do crânio não é meramente uma imagem da morte; ela aparece com grande frequência no simbolismo alquímico e é aquela parte do ser humano que não se desintegra como acontece com o corpo. É o caput mortuum, a caveira que sobra depois que o fogo purificador consumiu toda a matéria inútil. Na vida exterior do cliente, a situação que parecia estar desencadeando a sua depressão fora a decisão por ele tomada de vender sua empresa e aplicar sua energia no cultivo de uma larga extensão de terra que comprara na Austrália. Ele esperara ficar alegre e entusiasmado com esse empreendimento, mas, em vez disso, ficou deprimido e aflito. Essa indisposição mal recebida, que caiu sobre ele como uma violação, só passou a fazer sentido quando começou a entender que essa decisão representava a morte do poder materno em sua vida, com todas as implicações íntimas que essa separação acarreta.
Quando os espíritos descem ao Tártaro, cuja principal entrada fica num bosque de álamos pretos junto à corrente oceânica, cada qual é suprido por devotos parentes com uma moeda posta debaixo da língua do cadáver. Dessa forma, eles têm condições de pagar Caronte, o usurário que os transporta num barco decrépito até a outra margem do Estige. Esse detestável rio faz limite com o Tártaro no lado ocidental, e tem como afluentes os rios Aqueron, Flegethon, Cocytus, Aornis e Letes... Um cão de três cabeças ou, como dizem alguns, de cinquenta cabeças, chamado Cérbero, guarda a margem oposta do Estige, pronto para devorar os vivos intrusos ou almas fugitivas.
Álamos pretos, conforme assinala Robert Graves numa passagem adiante, são consagrados à deusa da morte. Os nomes desses rios infernais são evocadores e também explícitos: Estige, que significa "ódio", contém águas que são veneno mortal, mas que também podem conferir imortalidade; Aqueron quer dizer "fluxo de angústia"; Cocytus, "lamentação"; Aornis, "desprovido de pássaros"; Letes, "esquecimento" e Flegethon, "combustão". Todas essas imagens têm a fragrância do sentimento do Plutão astrológico.
O veneno do Estige é como o ácido do ressentimento profundamente enterrado, o que representa uma típica manifestação plutônica Essa irreconciliável amargura nos cria uma associação com as figuras das rancorosas Erínias, as servas da Justiça. Existe, sem dúvida, um veneno de vingança em Plutão, o encolerizado fantasma de Clitemnestra que força as Erínias, a perseguirem seu filho Orestes. Aqui não há compaixão, nem cura; apenas ódio cego e interminável. Sabemos através dos nossos tradicionais textos de astrologia que os nativos de Escorpião são bastante rancorosos, e não esquecem desprezo e injúrias. Plutão tampouco. A experiência do planeta frequentemente lança uma pessoa em sua própria potencialidade, antes não percebida, de ódio profundo, duradouro e inflexível. Moira, enquanto natureza, não esquece um insulto, nem deixa passar impune uma violação. O espírito do mito cristão, com sua figura piedosa e compassiva, é a antítese direta de Eresquigal, que representa o coração perverso da natureza que não consegue esquecer o próprio sofrimento. Tolkien personifica esse venenoso coração da natureza na figura do Velho Salgueiro no Senhor dos Anéis:
As palavras de Tom desnudam os corações e os pensamentos das árvores, os quais eram no mais das vezes escuros e estranhos, e repletos de ódio pelas coisas que andam livres sobre a terra, roendo, mordendo, despedaçando, queimando, cortando: destruidores e usurpadores... Mas nenhuma era mais perigosa do que o Grande Salgueiro: seu coração estava carunchado, mas sua , força era nova: ele era esperto e um mestre dos ventos; seu canto e seu pensamento percorriam os bosques de ambos os lados do rio. Seu velho e sedento espírito tirava força da terra e espalhava-se como finas raízes pelo chão e invisíveis galhos delicados no ar, até que ele tinha sob seu domínio quase todas as árvores da Floresta da Divisa até as Colinas.
O rio de ódio e de veneno que rodeia o inferno é igual ao Velho Salgueiro no coração da floresta, e ele nem sempre está consciente na pessoa. Na maioria das vezes, não nos damos conta de sua existência e pensamos em nós mesmos como pessoas decentes que conseguem perdoar uma ofensa alheia; em vez disso, porém, sofremos de doenças misteriosas e de distúrbios emocionais e, sutilmente, sabotamos nossos companheiros, pais, amigos, filhos e nós mesmos sem reconhecer por completo que em alguma parte possamos vê-los como "destruidores e usurpadores" que devem ser, forçosamente, punidos.
Aqui também talvez seja apropriado um ritual, e o mito com certeza nos oferece um. O ódio de Eresquigal é abrandado pelas carpideiras de Enqui, duas pequenas criaturas que o deus do fogo Enqui modela da sujeira por baixo de suas unhas. Essas pequenas carpideiras descem ao inferno e pranteiam ao lado de Eresquigal enquanto ela sofre e dá vazão ao seu ódio. Elas reconhecem a sua aflição, dão-lhe ouvidos, mostram empatia; não a julgam, nem a chamam de feia, perversa ou rancorosa, nem procuram induzi-la a "fazer" qualquer coisa a respeito disso. Elas representam uma qualidade que eu reputo ser essencial na abordagem de Plutão e que muitos psicoterapeutas chamam de capacidade de "estar com" alguém. E a capacidade de fornecer um recipiente para as águas envene¬nadas sem a necessidade de "modificar" as coisas. As Erínias também são aplacadas, no mito de Orestes, pelo mesmo suave reconhecimento. Atena escuta-as, não discute ou condena, mas, ao contrário, lhes oferece um altar e um respeitoso culto em troca da vida de Orestes.
A descoberta da própria venenosidade é um dos aspectos menos atraentes de um confronto com Plutão. As carpideiras de Enqui e Atena nos fornecem um modelo mítico de um tipo de autopercepção que se move entre severo autojulgamento e estúpida autocompaixão. Isso impõe um reconhecimento da necessidade ou inevitabilidade do ódio, através da empada com a coisa ofendida. Do ponto de vista de Eresquigal, a vida está completamente corrompida. Ela foi estuprada e exilada no inferno, e todos, particularmente sua livre e alegre irmã Inanna, devem sofrer por isto. As pequenas carpideiras não concordam nem discordam, não acusam nem racionalizam. Simplesmente ouvem e aceitam a aflição e a amargura dela. A fúria de Plutão, quando irrompe de dentro ou vem de fora, é terrível, talvez mais ainda quando e encontrada no lado de dentro, pois a gente fica com medo de destruir essas coisas que ama. Por isso, a fúria e reprimida e fica corroendo no inferno da psique.
No mito sumeriano, as carpideiras oferecem uma alternativa tanto para a repressão quanto para a expressão da raiva em comportamentos externamente destrutivos que, no final das contas, não curam a chaga. Pôr-se no lugar das carpideiras é mais difícil do que parece, todavia, pois mesmo que se consiga enfrentar este instinto vingativo e destruidor dentro de si mesmo, a tentação de "transformá-lo" e irresistível. O ego gosta muito de querer mudar tudo que ele encontra na psique de acordo com seus próprios valores e padrões, e o veneno de Plutão provoca uma resposta previsível: agora que vi minha feiura, acho-a desprezível e preciso curá-la. No entanto, as carpideiras de Enqui não estão preocupadas em curar Eresquigal. Elas conseguem enxergar os dois lados da questão: a necessidade de salvar Inanna e a legitimidade da fúria de Eresquigal.
Enqui, o deus do fogo, que moldou essas criaturas, é o correspondente sumeriano de Loge, no mito teutônico, e de Hermes, no grego. Ele não toma o partido de ninguém, mas seu objetivo é visualizar todo o esquema, e pode amar todos os protagonistas já que eles fazem parte do grande teatro. Acho, aliás, duvidoso que Eresquigal seja, na verdade, "curável". Seguramente ela não se mostra apta a responder às solicitações do ego, a não ser quando ela própria o deseja, se é que de fato alguma vez o deseja.
Letes é o rio do abençoado esquecimento, no qual as almas dos mortos submergem antes de voltarem ao mundo para uma outra encarnação. Os que creem na reencarnação como uma filosofia real podem considerar o fato de que misericordiosamente não recordamos dos nossos destinos quando nascemos como uma bênção de Plutão. Ou podem tomá-lo num sentido mais simbólico: não só esquecemos misericordiosamente o que está escrito para nós no nascimento, como também não nos lembramos muito bem como era a Grande Região Inferior depois que passamos por uma experiência platônica. Tendo conseguido emergir do inferno, assim como Orfeu somos ordenados por alguma voz Intima a não olhar para trás e, depois que o trânsito ou progressão termina, alegremente anunciamos quão produtivo, enriquecedor e inspirador de crescimento tudo isso foi. Não nos recordamos desse lugar, pois se o fizéssemos, perderíamos a coragem para enfrentar a futura e próxima volta do Grande Círculo. Letes e uma dádiva de Plutão; é uma imagem de maleabilidade psíquica, e a capacidade de esquecer o sofrimento. Não que Plutão não ofereça riquezas. Acho que necessariamente temos de esquecer depois o preço que pagamos por elas, a fim de que não sejamos envenenados pelo Estige e jamais perdoemos a existência.
Ademais, acho que as experiências de Plutão muitas vezes coincidem com uma lembrança do que estava esquecido, com uma redescoberta da aflição, fúria e do ódio que foram paralisados e empurrados para o subconsciente pelo ego para sua própria sobrevivência.
O psicoterapeuta está familiarizado com o miasma de ódio e de raiva inflamados, tanto dos paia quanto da própria pessoa, que irrompem quando as ofensas, as rejeições e as humilhações inconscientes da infância vêm à luz. Onde Plutão é encontrado no horóscopo, há quase sempre um esquecimento, uma repressão necessária e uma tendência à recordação inesperada e à erupção vulcânica de veneno sobre um objeto que talvez não passe apenas de um catalisador. Parece haver uma relação entre Plutão e aquilo que Freud entende por repressão (que não é realizada intencionalmente por um determinado ato de consciência, mas ocorre como um instinto de sobrevivência, através de uma espécie de censura inconsciente). São essas as coisas que devemos esquecer por algum tempo, a fim de podermos viver.
Existem desejos "reprimidos" na mente... Quando digo que existem esses desejos, não estou fazendo uma declaração histórica no sentido de que eles outrora existiam e foram depois abolidos. A teoria da repressão, que é essencial para o estudo das psiconeuroses, afirma que esses desejos reprimidos ainda existem — embora haja uma inibição simultânea que os reprime.
Podem-se fazer algumas eruditas conjeturas a respeito da natureza dos "desejos" reprimidos de Plutão, como também a respeito das excelentes razões para a "inibição simultânea" que bloqueia a entrada deles na vida consciente. Freud, que tinha Escorpião no ascendente, formulou-as muito bem no seu conceito do id. Elas são demasiado violentas, vingativas, sanguinárias, primitivas e perigosas para que a pessoa comum se sinta muito à vontade ou segura com a sua intrusão. A par dos "desejos", pode-se incluir lembranças, experiências de grande intensidade emocional que são esquecidas juntamente com seus objetos. Assim, largas fatias de infância caem debaixo da faca do censor — fatias estas que revelam o rosto selvagem do jovem animal lutando por autossatisfação e pela sobrevivência.
Juntamente com o veneno, potencialidades também podem ser reprimidas, para não dizer que uma coisa poderia desencadear a outra. A criança que está sujeita à fúria possessiva da mãe ou ao gélido desinteresse do pai, cada vez que se senta para brincar com a massa de argila ou com tintas e comete a afronta de recolher-se à sua própria psique individual, irá crescer e tornar-se o adulto "sem criatividade" que por alguma insondável razão não consegue sequer tentar levar o lápis ao papel, preferindo, ao contrário, viver no crepúsculo cinzento de uma vida sem brilho e sem expressão, com inveja de todos os que sabem se expressar melhor, em vez de arriscar-se a recordar o preço pago por aqueles esforços criativos iniciais. A criança que atrai para si o ciúme dos pais por ser inteligente, bonita e independente demais, se transformará no adulto que sabota a si mesmo toda vez que está na iminência de ter sucesso na vida, em vez de arriscar-se à terrível competição com os pais, sem o apoio dos quais ela não pode viver. Não se quer interromper a monotonia, o esquecimento, mesmo que isso signifique que o surgimento ou o desenvolvimento de um talento nascente será sacrificado. Essa atitude é melhor e mais fácil do que enfrentar os sentimentos violentos dos pais, dos irmãos e de si mesmo. Mais tarde, frequentemente sob trânsitos e progressões relacionados com Plutão, nos lembraremos do que havíamos esquecido, do medo, do sofrimento, do desejo e da raiva. Então, é preciso fazer um retorno ao mesmo lugar, passando pela mesma depressão, angústia e desgosto por si mesmo. No entanto, a Jornada posterior é mais uma espiral do que um círculo, pois é a criança dentro do adulto quem recorda, e o adulto poderá, talvez, ajudar a criança a suportar e a controlar o sofrimento.
Tártaro é, por vezes, o nome dado no mito a todo o reino de Hades. Bastante amiúde ele se refere a um tipo de sub-reino, a uma cidadela, por assim dizer, que está próxima por natureza ao conceito medieval de Inferno. É do Tártaro que a prole da Mãe Noite sai para atormentar os vivos e punir as blasfêmias e os pecados da família contra a linhagem matriarcal. No Tártaro, as almas dos maus ficam aprisionadas em imutável tormento durante toda a eternidade. Contudo, é um mundo radicalmente diferente do Inferno cristão. O tormento no Tártaro e descrito por meio de imagens de desejo frustrado, e não de indiscriminada tortura sádica. Os pecados também são diferentes. Quando viajamos com Dente pelos círculos do Inferno, encontramos um catálogo previsível de pecadores medievais: o adúltero, o usurário, o sodomita, o blasfemador. Encontramos, além disso, alguns rostos pagãos familiares, pois o cristianismo de Dante não era assim tão cristão: a Fortuna ou o Destino com a sua Roda, Cérbero e Dis (Hades) de três cabeças. Todavia, o inferno de Dente e um reflexo da Obsessão da Idade Média com a execração do mundanismo e da sexualidade.
No Tártaro, as coisas são diferentes. Os pecados de homens contra homens, em particular os pecados carnais, não são dignos do nome. Hubris, por outro lado, recebe a punição justa. As figuras míticas aprisionadas no Tártaro são homens e mulheres que ultrapassaram seus limites, transgrediram a lei natural, Insultaram Moira e desafiaram os deuses. Eles cobiçaram uma deusa, zombaram de uma divindade ou vangloriaram-se de serem maiores do que os habitantes do Olimpo. A lei de Plutão não é aquela feita de elaborações sociais e jurídicas, nem de preocupação com o comportamento civilizado do grupo. Sendo ele próprio um estuprador, Plutão não julga os desejos sexuais alheios. Ele não é Saturno, e se mostra desinteressado com o que os homens fazem uns aos outros no mundo da forma. Ele não é um patriarca, mas, ao contrário, um matriarca. Assim, Sísifo rola eternamente sua rocha montanha acima e terá sempre de vê-la rolar montanha abaixo até o fundo outra vez, para todo o sempre, visto que ele revelou os divinos segredos de Zeus. Tântalo arrasta-se eternamente em direção à água e ao fruto que estão sempre fora de seu alcance, visto que ele insultou e ridicularizou os deuses. Íxion gira eternamente na sua roda de fogo, porque tentou estuprar Hera, a rainha dos deuses. Todas essas imagens são formulações de frustração, de interminável desespero, de combustão interior (tal como o rio Flegethon), de humilhação e de nemesis como castigo por arrogância e orgulho.
Ser posto sobre a roda como punição (a exemplo de Íxion é ser posto num lugar arquetípico, atado às voltas da fortuna, ás voltas da Lua e da sorte e às infindáveis repetições de voltar eternamente à mesma experiência sem descanso... Rodas são círculos fechados e o círculo fecha-se em torno de nós quer no anel de casamento, na coma de louros, ou na coroa funerária.
A irrevogável rotação do destino, seja para o ganho seja para a perda, é característica de Plutão. Assim também é a experiência do desejo frustrado. O que desejamos mais do que qualquer outra coisa antes e que, no entanto, é a única coisa que não podemos ter, ou que só podemos ter mediante grande sacrifício ou mediante a morte de alguma parte estimada de nós mesmos — tudo isso é típico de Plutão. Naturalmente, a arena sexual é um dos lugares mais evidentes em que esse tipo de experiência ocorre. Assim também é a arena do poder e da posição. Poder e sexualidade, poder ou perda de poder pela sexualidade, são temas intrínsecos a Plutão. Ao que parece, os escandinavos sabiam disso' quando duplicaram o sentido dessa palavra para designar o destino e os órgãos genitais. Acho que nem sempre fica claro saber se o poder está nas mãos de quem é poderoso ou se está nas mãos do que se submete a ele, pois ambos são aspectos da mesma figura, assim como Perséfone pertence ao Hades. A necessidade, a ganância e o desejo provêm de ambos e, onde quer que Plutão esteja presente numa situação em que uma das partes tenha que se submeter à outra que é mais poderosa, talvez seja importante lembrar que quando esse planeta está envolvido, ninguém jamais está isento de culpa.
Confrontados com Plutão, deparamo-nos com nossas detestáveis compulsões, insaciáveis paixões: o impossível e o repetitivo esquema de luta com algo apenas para que o encontremos outra e outra vez. Tártaro descreve, em linguagem mítica, a escuridão, a ganância e a patologia humanas. Ele abrange a doença, a crueldade, a combustão, a obsessão, a frieza gélida e o desejo perpétuo. Essas atormentadas figuras nos informam algo mais a respeito de Plutão: ele nos faz lembrar repetidas vezes da coisa incurável, do lugar da ferida intratável, do lado psicopata da personalidade, do rosto ultrajado e contorcido das Górgonas. Ele é a coisa que nunca melhora.
Uma das imagens da alquimia para esse ganancioso, desejoso, violento e irreparável aspecto da natureza é o lobo, que deve ser posto no alambique com o rei. O lobo destrói o rei e é, depois, ele mesmo queimado em fogo lento até que só fiquem as cinzas. Se essas coisas realmente se transformam, só o fazem através do fogo; e o rei, que personifica o domínio e o sistema de crenças do ego, deve morrer primeiro. Plutão é, por conseguinte, um grande e divino estabilizador da hubris. Sem ele o homem se julgaria Deus, e acabaria se destruindo: uma situação que se toma cada vez mais provável com o decorrer do tempo. Defrontado com Plutão, assim como a criancinha se defronta com a mãe, a pessoa vivencia o círculo intransponível das limitações da alma, das limitações do destino, que não são os limites mundanos de Saturno, mas sim a característica mais profunda de sua vulnerabilidade e mortalidade.
Os estados circulares de repetitividade, as voltas e mais voltas no círculo de nossas próprias condições, forçam-nos a reconhecer que essas condições constituem a nossa própria essência e que o movimento circular da alma não pode ser diferenciado do destino irracional.
Plutão, ao que parece, governa o que não pode ou não quer mudar. Esse é um problema, particularmente espinhoso numa época de autoterapias e do aumento da crença na ideia de que uma pessoa pode se transformar no que quiser, desde que conheça as técnicas, os livros ou os guias espirituais certos. Humildade perante os deuses é uma virtude antiga, promovida não só pela Bíblia, como também pelos gregos. "Nada em excesso" — nem mesmo a autoperfeição — estava gravado na porta do templo dedicado a Apoio em Delfos, ao lado de "Conhece-te a ti mesmo". Eram essas as principais exigências que os deuses faziam aos homens. Mas é justamente essa questão que Plutão nos obriga a confrontar.É uma ironia e também um paradoxo que a aceitação legítima do imutável seja, com frequência, uma das chaves para a verdadeira e profunda mudança no interior da psique. No entanto, esse pequeno exemplo de ironia, que teria caído sob medida ao contraditório Apoio, não parece passível de ser aprendido em nenhuma escola e sim nas provações da vida. Portanto, ele permanece um segredo, não porque ninguém o irá revelar, mas porque ninguém irá acreditar nele, a menos que tenha sobrevivido à provação.
Dessa forma, Plutão, como um símbolo do destino punitivo, rege o lugar onde a vontade não tem mais eficácia. Terapias, meditações, dietas e encontros não chegam até lá, e a decisão não mais reside em saber se devo agir certo ou errado, mas se devo sacrificar meu braço esquerdo ou direito. Esse deus é uma imagem de nossa servidão, humilhação e violação. Penso que a questão da hubris, a ofensa contra os limites circunscritos e contra o destino, jaz no âmago do significado do planeta. Repetições desse tema também hão de ser encontradas no mito relativo ao signo de Escorpião, pois o escorpião nos mais antigos mitos sumerianos, babilônicos e egípcios, e também no grego clássico, é invariavelmente a criatura enviada por uma divindade zangada para punir a hubris de alguém.
Desde a sua primeira expressão em grego e latim, o mito de Escorpião tem sido relacionado com o desastre que atingiu Orion, o grande caçador cuja hubris o levou a ofender os deuses. O Escorpião atacou e matou-o, emergindo repentinamente das entranhas da terra — de um mundo além do qual Orion, o agredido, pertence. Pelo que sei, não existe nenhum texto astrológico no qual esse elemento de súbita e destrutiva agressividade não apareça como uma característica essencial de Escorpião. O simbolismo astrológico expressa esse fato atribuindo Escorpião a Ares (Marte), o deus ígneo e agressivo, senhor das catástrofes violentas e dramáticas; desse modo, confere imediatamente a Escorpião o significado central de um colapso no equilíbrio pela irrupção, das sombras, de um assaltante desconhecido... Escorpião, o signo da criatura que surge de umidades ctônicas, é de fato caracterizado cada vez mais claramente como o signo da impureza, da natureza primitiva, caótica, discordante, abominável, e que se revela por súbitas e perigosas irrupções.
Essa atraente descrição parece coincidir com o que temos visto de Plutão. É quase desnecessário acrescentar que, no mito de Orion, o escorpião gigante que destrói o grande caçador devido à hubris deste é mandado por Ártemis-Hécate, "senhora dos caminhos noturnos, da sorte e do mundo dos mortos".
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