Hades, o deus da morte, preside o julgamento
sobre as ações de um homem depois que este morre.
O deus da morte, Hades, não se esquecerá
das matanças e das dívidas de sangue.
Ésquilo
Se desejamos abordar os símbolos astrológicos por meio da ampliação de outras imagens e de símbolos, e não por meio de uma definição concreta, então é hora de darmos uma olhada nas contribuições do mito a respeito de Hades-Plutão e sobre o tema dos regentes do inferno em geral. O senhor grego do inferno era, originalmente, conhecido como Hades; o epíteto "Plutão", que significa "riquezas", é uma denominação posterior que os romanos usavam então para descrevê-lo. James Hillman é esclarecedor sobre essa mudança de nomes: É especialmente importante reconhecer Plutão, em nossas eufêmicas referências ao inconsciente, como o doador do todo, um depósito de riquezas abril). dantes, um lugar não de fixação no tormento, mas sim um lugar, desde que corretamente propiciado, que oferece imensa abundância. O eufemismo é uma maneira de esconder a ansiedade. Na antiguidade, Plutão ("riquezas") era usado como um nome eufemístico para ocultar as profundezas assustadoras do Hades.
Com praticamente a mesma disposição, as Erínias, as terríveis vingadoras da Mãe, eram chamadas Eumênides, "as amáveis damas".
Nós astrólogos também usamos eufemismos. "Transformação" é uma palavra sonora, com fragrância de numinosidade e profunda intenção psíquica, e mais encorajadora para o cliente que possui um trânsito ou progressão envolvendo Plutão. Entretanto é, infelizmente, o tipo de palavra a que gostamos de recorrer quando o significado de um planeta é vago ou meramente intelectual, ou quando a experiência prognosticada no horóscopo augura crise e sofrimento para o cliente. Não é nada fácil observar uma outra pessoa passando por um sofrimento necessário. Primeiro, porque nossa compaixão protesta que esse sofrimento não deve ser necessário, pois nossos valores sentimentais muitas vezes não estão de acordo com a lei implacável de Plutão. Segundo, porque nos vemos espelhados na incipiente desintegração ou perda do outro. É particularmente difícil lidar com Plutão a menos que se tenha alguma confiança no destino; mas, como se pode confiar nele, a não ser que se tenha passado algum tempo pelo desespero, pela escuridão, a raiva e a impotência, descobrindo o que mantém a vida quando o ego já não tem mais condições de fazer suas escolhas habituais? Jamais encontrei qualquer coisa agradável ou divertida nos trânsitos e progressões de Plutão, por mais psicologicamente esclarecido que seja o cliente. O discernimento não pode poupar o sofrimento, embora possa evitar o sofrimento irracional. É óbvio que muito depende da perspicácia da pessoa, e também da condição de Plutão no horóscopo de nascimento. Se não houver nenhum discernimento, é de se esperar que o trânsito ou progressão passe sem que uma excessiva perturbação fique registrada na consciência, se a pessoa for bastante embotada. Algumas vezes, ocorre uma enorme liberação de energia que acompanha os movimentos de Plutão: coisas que estavam há muito tempo adormecidas ou que morreram prematuramente na vida são ressuscitadas e irrompem de repente. Outras vezes, são as paixões que criam essa irrupção, e essa liberação de energia pode ser imensamente criativa. Contudo, esse tipo de experiência, apesar de tardiamente se perceber o seu valor, é frequentemente doloroso, frustrante, desconcertante, desorientador e assustador, e raramente acontece sem alguma espécie de sacrifício ou perda, voluntária ou involuntária, ou sem alguma espécie de confrontação com aquilo que é mais brutal e "injusto" na vida. Até mesmo os corajosos escorpianos, que são regidos por Plutão e, por isso, possuem um pressentimento inato da deusa Necessidade e da inevitabilidade das origens e términos erigidos sobre os cadáveres de desmembrados pretéritos, não estão imunes ao receio natural do ego com relação àquilo que é excessivamente poderoso e não pode ser aplacado nem pela vontade nem pela razão. Morte e paixão deixam mudanças irrevogáveis atrás de si, seja num nível físico ou psíquico, e o que findou não pode ser reposto de novo.
Às vezes pode-se ter a impressão de que a lei do destino concede algum bem positivo aos homens; no entanto, do conjunto de suas funções, não pode haver dúvida de que seu caráter não é positivo, senão negativo. Ela estabelece uma fronteira para limitar a duração, uma catástrofe para limitar a prosperidade, a morte para limitar a vida. Catástrofe, cessação, limitação, todas as formas de "até aqui, e não mais além", são formas de morte. E a morte é ela própria o sentido primordial do destino. Sempre que o nome de Moira é pronunciado, o primeiro pensamento que surge é o da morte, e é na inevitabilidade da morte que a ideia de Moira está enraizada.
Embora se possa saber que a vida retornará revigorada em uma nova forma, mais rica e mais vital, não obstante, a coisa que atingiu seu término designado sofre na morte, e ela mesma jamais há de voltar à vida. Angústia, medo e profunda aflição quase sempre acompanham essas mortes e, seja qual for a "parte" de nós que passa por essa transição, nós a vivenciamos no íntimo como se fosse a totalidade de nós se estivermos inteiramente conscientes dela, identificando-nos com ela e com seu sofrimento: eis o inevitável efeito secundário de qualquer alteração profunda na psique. A mente discorre animadamente sobre transformação e renovação, mas alguma coisa no fundo ainda questiona: O que acontecerá se não houver renovação? Como poderei confiar em algo que não posso ver nem compreendo? O que fiz para merecer um destino desses: onde foi que falhei? E se o vazio absoluto simplesmente durar para sempre? Qualquer experiência de depressão profunda traz consigo a forte sensação de que nada irá mudar jamais. Por conseguinte, talvez nos fosse apropriado, juntamente com afirmações animadoras sobre a potencialidade futura inerente aos movimentos de Plutão, reconhecer também a marca de uma iniciação no irrevogável e de uma necessidade de reverenciar legitimamente a depressão e o desespero. Empatia e respeito pelo processo de morte de outrem, literal ou metafórico, é uma necessidade presente com Plutão, ainda que este geralmente não seja o dom do conselheiro astrológico mais uraniano. A morte deixa todo mundo constrangido; mesmo na profissão médica, a questão de contar a uma pessoa, ou à família dela, que ela está morrendo é um assunto desagradável, e não é de surpreender que muitos médicos estejam mal preparados para esse confronto. E o caso não é diferente num nível interno, pois o cheiro da morte íntima desenha os próprios temores de uma pessoa.
O mito nos informa que Hades é o senhor das profundezas, o deus das coisas invisíveis. Ele é irmão de Zeus, tendo portanto a mesma posição que o regente do céu. Ele é tenebroso, mas um parceiro tão poderoso quanto o todo-misericordioso pai do céu. De fato, ele ocupa a posição mais elevada, visto que sua lei é imutável ao passo que a de Zeus pode ser contradita. A Hades não foram, realmente, ofertados altares ou templos onde pudesse ser cultuado; simplesmente se reconhecia que a morte está em toda a parte da vida, e que cada coisa viva contém dentro de seu corpo mortal seu próprio altar, sua particular e inevitável semente de morte que nasce simultaneamente com vida física. Hades não pode ser visto pelos homens no mundo de cima, pois usa um elmo que o toma invisível. Esta é a conexão oculta, o destino secreto, o "mundo interior daquilo que é dado". Não podemos perceber Hades, mas ele está presente em todas as ocasiões, sendo inerente à formação de cada pensamento, sentimento, inspiração, relacionamento ou ato criativo, conforme seu predeterminado e inevitável fim.
A figura masculina de Hades como senhor do inferno é uma formulação relativamente tardia. O caos primordial do qual a vida emerge e ao qual retorna pertencia, no princípio, à Grande Mãe ou á deusa Nyx. Todos os habitantes das profundezas — Sorte, Velhice, Morte, Assassinato, Incontinência, Sono, Sonhos, Discórdia, Nêmesis, as Erínias e as Moiras, as Górgonas e as Lâmias - originam-se do ventre dela. Uma outra de suas faces, a antiga Hécate de três cabeças, deusa da sorte, magia, parto, bruxaria e da rotação eterna da Lua flutuante, é subjuga. da por uma cultura mais patriarcal e permanece apenas na figura de Cérbero, o cio tricéfalo que guarda a margem mais distante do Estige. As imagens mais primitivas da deusa são as de uma Mãe fálica, uma divindade autofecundante que dá à luz as Moiras sem o esperma masculino.
No fim, essa deusa desaparece nas suas próprias profundezas, e o poder fálico é representado por uma divindade masculina: Hades. Apesar de ser um deus, ele é o filho das trevas, criado e executor da Mãe invisível. No mito sumeriano, que antecede o mito grego clássico de muitos séculos, é a grande deusa Eresquigal quem rege o reino dos mortos. Seu nome significa "Senhora da Grande Região Inferior", e é sobretudo sua imagem que, acho, poderá nos ajudar a ampliar o planeta Plutão a fim de o entendermos melhor. Eresquigal controla guardiães e lacaios, como também um vizir chamado Namtar, que quer dizer "destino"; estes, porém, são os servos dela, que cumprem as suas ordens.
Pelo material a seguir sobre Eresquigal sou grata a Sylvia Brinton Perera que, em seu livro, Declínio da deusa, nos oferece uma ampla e fascinante interpretação dessa deusa arcaica do inferno. A relevância desse material é suficiente para confirmar minha intuição de que no Plutão astrológico estamos frente a frente com algo feminino, primordial e matriarcal. Quando a deusa Inanna, a rainha sumeriana do céu (a primitiva forma de Istar, Afrodite e Vênus), desce ao reino de sua irmã Eresquigal, a Senhora da Grande Região Inferior trata sua brilhante e bela irmã de acordo com as leis e ritos válidos para qualquer um que entre no reino: Inanna é levada "nua e de joelhos", enquanto suas roupas e insígnias reais são ritualmente rasgadas em cada um dos sete portais do inferno. Esse rito de entrada é um processo que tenho constatado, em muitas ocasiões, ser concomitante aos trânsitos e progressões de Plutão - a perda gradual de tudo o que se usou previamente para definir a identidade da pessoa, e o "pôr-se de joelhos" em sinal de humilhação, humilde e eventual aceitação de algo maior e mais poderoso do que a própria pessoa. A Sra. Perera escreve a partir de sua experiência como analista junguiana, enfocando a jornada iniciatória de mulheres que sofreram uma dissociação de seu próprio centro feminino. O que estou escrevendo aqui também parte da minha experiência como analista e igualmente da minha experiência como astróloga; e tenho notado que este declínio, com sua perda de características, adereços e afetos, parece ocorrer tanto em homens como em mulheres sob os trânsitos e progressões de Plutão.
Existe muito das Górgonas e da negra Deméter nela: no seu poder e terror, nas sanguessugas de sua cabeça, nos seus olhos glaciais, na sua íntima relação com o não-ser e com o destino... O domínio de Eresquigal, quando estamos sob ele, parece ilimitado, irracional, primordial e totalmente indiferente, até mesmo destrutivo, à pessoa. Ele contém uma energia que começamos a entender através do estudo dos buracos negros e da desintegração dos elementos, assim como através dos processos de fermentação, câncer, decomposição e das atividades inferiores do cérebro que regulam os movimentos peristálticos, a menstruação, a gravidez e outras formas da vida corporal a que temos que nos submeter. o lado destrutivo-transformador da vontade cósmica. Eresquigal é semelhante a Kali, que através do tempo e do sofrimento "implaca¬velmente reduz a cinzas todas as distinções no seu fogo indiscriminado" — e, no entanto, propaga vida nova... Irreverenciadas, as forças de Eresquigal são sentidas como depressão e como uma agonia insondável de impotência e de inutilidade — desejo inaceitável e energia transformadora-destrutiva; autonomia inaceitável (a necessidade de separação e de autoafirmação) dividida, voltada para dentro, devorando o sentimento individual de potência e valor da vontade individual.
Não consigo me lembrar de nenhuma descrição melhor que esta a respeito da qualidade emocional de Plutão.
Gostaria agora de retornar ao Hades, o desmedido falo da Mãe. Sempre que o mito retrata a entrada dele no mundo da superfície, ele é persistentemente mostrado representando um tema: o estupro. Isso sugere algo mais sobre a nossa experiência do planeta Plutão. Sua intrusão na consciência dá a impressão de ser uma violação, e nós, a exemplo de Perséfone, a virgem do mito, somos impotentes para resistir. Onde Plutão é encontrado, há amiúde um sentimento de penetração violenta, indesejado porém inevitável, de algum modo, necessário ao equilíbrio e desenvolvimento da pessoa — embora seja possível não vê-lo assim na ocasião. Eresquigal, também, representa uma espécie de estuprador para os que voltam seus rostos contra ela:
Para a consciência matriarcal ela representa o continuum em que estados diferentes são simplesmente experimentados como transformações de energia. Para o patriarcado a morte torna-se uma violação da vida, uma violência a ser temida e controlada, tanto quanto possível, com a distância e a ordem moral.
O mito do estupro de Perséfone é importante também para a compreensão de Plutão, pois a inocência virginal dela é que atrai o desejo do tenebroso senhor do inferno. Perséfone é uma deusa da primavera, a face ainda não violada de sua mãe Deméter, senhora da colheita. Ela é a virgem arquetípica, o solo fértil ainda não semeado; seu símbolo é a Lua crescente, que promete realização futura, mas que se encontra eternamente num estado de potencialidade. Ela está estreitamente ligada à sua mãe deusa da terra, aos cinco sentidos e ao mundo da forma. Também reflete a superfície brilhante da vida que promete alegrias futuras através dos olhos da juventude pura. Dessa forma, ela constitui uma imagem de um tipo particular de percepção e perspectiva humanas, cheias de possibilidades mas ainda informes.
O incontestável vínculo entre esse par de deusas, mãe e filha, sugere algo da divina unidade entre a mãe e o bebê, no admiravelmente inocente e protegido mundo da primeira infância onde até então não existe separação, solidão, conflito ou medo. Esse é o mundo antes da Queda, antes que o cordão umbilical seja cortado, e nele a morte não existe pois ainda não existe vida individual. Partes de nós podem permanecer nesse urobórico amplexo até um período posterior da vida, pois Perséfone não é apenas uma imagem da juventude cronológica, nem da virgindade, no sentido literal. A medida que nosso conhecimento e habilidades exteriores vão se tornando cada vez mais sofisticados, também vamos esquecendo esses ritos e rituais que facilitam a separação entre o jovem e a sua mãe na puberdade. A cultura da tribo primitiva com suas elaboradas cerimônias para anunciar o advento da vida adulta e da responsabilidade, se perdeu para nós no Ocidente há muito tempo. Assim sendo, ficamos como senis Perséfones colhendo flores esperançosamente, até que algum crítico trânsito ou progressão de Plutão apareça. Perséfone, apesar de seu nome — estranhamente — significar "portadora de destruição", é insensível à vida. Seu rapto é cruel, mas governado pela necessidade; e ela própria o invoca secretamente, colhendo a estranha flor da morte que Hades plantou na campina para o deslumbramento dela. E o roubo da flor que prenuncia a abertura da terra debaixo dela e a chegada do senhor das trevas no seu coche puxado por negros cavalos.
A questão da flor parece uma coisa tão pequena, mas creio que o processo de Plutão funciona dessa maneira. Fazendo-se um retrospecto, é possível perceber que é uma pequena coisa o que faz com que os portões sejam abertos. Perséfone é conivente com o seu destino, mesmo ao comer voluntariamente a romã, o fruto do inferno, que é um símbolo de fertilidade devido à sua profusão de sementes. Ela é uma imagem daquele aspecto da pessoa que, por mais aterrorizada, ainda assim busca a união que é um estupro e uma aniquilação. Nos mistérios órficos, Perséfone dá ao seu senhor um filho no inferno, assim como Eresquigal, no mito sumeriano, dá à luz uma criança depois de ter destruído sua irmã Inanna e pendurá-la nua numa estaca até apodrecer. O filho de Perséfone é Dioniso, a contraparte infernal do brilhante redentor do céu, a quem o cristianismo deu forma na figura de Jesus Cristo. Ambos são nascidos de virgens, através de pais divinos. Mas Dioniso, que redime através do êxtase erótico, é um rilho muito mais ambíguo. Parece que o mito expressa algo sobre a fertilidade de qualquer encontro com Plutão; ele é cheio de fruto. Uma sensação enriquecida da vitalidade e da sensualidade do corpo é, certamente, uma faceta frequente do fruto de Plutão. Talvez haja outros filhos originários dessa experiência de arrebatamento: uma perspectiva nova, mais profunda e mais ampla, uma descoberta nova dos recursos íntimos, uma compreensão mais aguçada da própria finalidade e da autonomia pessoal. Todas essas coisas devem ser pagas, por meio da ruptura do hímen psíquico que nos protege do começo ao fim de nossa inocência.
Essas profundezas são realmente assustadoras. Não é de surpreender que usemos eufemismos, nem tampouco que Escorpião, o signo de Plutão, sempre tenha tido uma reputação tão duvidosa. Pode ser um tanto complicado encontrar as palavras certas para o cliente, isso sem falar de si mesmo, já que Plutão se move lentamente para uma prolongada conjunção como Sol, a Lua, o ascendente e Vênus, indicando que os salões de Hades irão abrir suas portas para receber o relutante convidado a seu próprio e inconsciente pedido.
Em seguida, existe a questão de saber o que há lá embaixo. O mito oferece uma descrição geográfica notavelmente precisa da Grande Região Inferior. O reino de Eresquigal possui sete portões e uma estaca que serve para dependurar o visitante. Paisagens desse tipo são paisagens subjetivas. Fazem parte de um "lugar" aonde "vamos" através de humores, sentimentos, sonhos e fantasias. Primeiro, poderíamos examinar as entradas. Geralmente são grutas, fissuras, fendas na terra e crateras de vulcões. Através dos buracos e frestas da consciência, através das angústias e da erupções emocionais e incontroláveis de uma pessoa e de suas fobias e fantasias compulsivas em que o ego é inundado por alguma coisa "diferente", vai-se caindo, cada vez mais despido de pretensões em cada uma das entradas. Isso é conhecido no mundo analítico como abaissement du niveau mental, o rebaixamento do limiar de consciência que ocorre através dos sonhos, das fantasias, do delírio, da paixão, até mesmo de deslizes verbais e de inexplicáveis omissões e amnésia. As entradas prediletas de Plutão são, creio, os vulcões onde algum evento aparentemente insignificante desencadeia uma grande torrente de estranha e, muitas vezes, terrível ira, ciúme, ódio, medo ou fúria homicida, que revela que não somos tão civilizados quanto parecemos. A criatura indomada que irrompe é, assim como Eresquigal, cheia de rancor vingativo por mágoas que nem sequer sabíamos que tínhamos. O vulcão tem quase sempre uma posição determinada onde quer que Plutão se encontre no horóscopo.
Os gregos, a exemplo dos sumerianos, visionaram um rito elaborado de ingresso ao inferno; no entanto, o relato mítico deles é diferente. As almas dos mortos devem atravessar o rio Estige, transportadas pelo antigo barqueiro Caronte que exige uma moeda em troca. Aqui, da mesma forma como nos portões de Eresquigal, algo deve ser dado, algo de valor que a própria pessoa possui. O dinheiro é uma das imagens de valor, de riqueza, de identidade e propriedade do ego. O que acumulamos, ao que parece, deve ser distribuído durante a descida - as insígnias reais e as roupas com as quais nos identificamos, e o nosso habitual senso de valor, nossa inatacável autoestima, nosso grande apreço. O sentimento de inutilidade, de falsidade e de repulsa à própria nulidade, de decepção com a vacuidade das pompas que tanto significado tinham, é algo que tenho repetidas vezes ouvido expressar aqueles que estão passando pelos trânsitos e progressões de Plutão. Isso não se limita apenas aos assim chamados "maus" aspectos, senão que também se aplica aos trígonos e sextis. Dá a impressão de que a aceitação desse sentimento de ser despido, humilhado e vazio é uma precondição necessária para o acólito nos portões de acesso.
A seguir, citamos o sonho de um homem que veio em busca de uma leitura do horóscopo quando o transitório Plutão estava fazendo uma longa conjunção com sua casa do Sol, em Libra, situada na décima casa. Ele era um bem-sucedido editor de manuais científicos, dono de uma companhia internacional que lhe fornecia uma considerável renda e um lugar respeitado na sociedade. Com essa persona ele sempre se identificara, pois ela lhe dava uma sensação de realização e de importância. Que isso também lhe fornecia um meio de realizar o sonho de sua mãe de ter um filho brilhante e bem-sucedido ainda não se dela conta, como um motivo primário na escolha de sua carreira, embora muitos astrólogos pudessem encarar com reserva a unidade de identidade entre mãe e filho que o sol na décima casa sugere. Ele me contou seu sonho no decorrer da interpretação do mapa astral, porque me referia algumas das imagens e sentimentos relacionados com Plutão e que mencionei acima: morte, apatia, depressão, isolamento e sepultamento.
Sonho que morri e que agora estou esperando algum tipo de renascimento ou de ressurreição. Em lugar da cabeça, tenho um crânio descarnado entre os ombros. É horrível sentir esse crânio. Estou morto, apodrecido, inaceitável. Num quarto à direita, todos os livros e as revistas que publiquei são exibidos como troféus em caixas com tampo de vidro. Alguns amigos vêm me convidar para jantar, mas ficam assustados diante da visão de meu crânio. Tento explicar que estou morto, mas que uma outra vida me aguarda. Todavia, eles apenas mostram repugnância e me deixam sozinho. Num outro quarto, meus funerais estão em andamento. Minha mãe chora convulsivamente sobre meu caixão. Ela não pode me ver, ou à parte de mim que subsiste. Para ela, eu estou completamente morto.
Esse sonho, na verdade, dispensa interpretação. Ele se descreve bastante adequadamente como uma imagem subjetiva da experiência de Plutão e como um comentário profundo sobre o significado desse período na vida de meu cliente. Apesar de ter achado o sonho incômodo e perturbador, ainda assim ele disse que tinha ficado com uma sensação de confiança durante um período de grande depressão e desespero. Em resumo, o sonho lhe trouxe — e ele não estava se submetendo a nenhuma forma de psicoterapia, mas chegou sozinho e aos poucos à compreensão disso — o pressentimento de que sua depressão era necessária de algum modo que ele não conseguia entender profundamente. A imagem do crânio não é meramente uma imagem da morte; ela aparece com grande frequência no simbolismo alquímico e é aquela parte do ser humano que não se desintegra como acontece com o corpo. É o caput mortuum, a caveira que sobra depois que o fogo purificador consumiu toda a matéria inútil. Na vida exterior do cliente, a situação que parecia estar desencadeando a sua depressão fora a decisão por ele tomada de vender sua empresa e aplicar sua energia no cultivo de uma larga extensão de terra que comprara na Austrália. Ele esperara ficar alegre e entusiasmado com esse empreendimento, mas, em vez disso, ficou deprimido e aflito. Essa indisposição mal recebida, que caiu sobre ele como uma violação, só passou a fazer sentido quando começou a entender que essa decisão representava a morte do poder materno em sua vida, com todas as implicações íntimas que essa separação acarreta.
Quando os espíritos descem ao Tártaro, cuja principal entrada fica num bosque de álamos pretos junto à corrente oceânica, cada qual é suprido por devotos parentes com uma moeda posta debaixo da língua do cadáver. Dessa forma, eles têm condições de pagar Caronte, o usurário que os transporta num barco decrépito até a outra margem do Estige. Esse detestável rio faz limite com o Tártaro no lado ocidental, e tem como afluentes os rios Aqueron, Flegethon, Cocytus, Aornis e Letes... Um cão de três cabeças ou, como dizem alguns, de cinquenta cabeças, chamado Cérbero, guarda a margem oposta do Estige, pronto para devorar os vivos intrusos ou almas fugitivas.
Álamos pretos, conforme assinala Robert Graves numa passagem adiante, são consagrados à deusa da morte. Os nomes desses rios infernais são evocadores e também explícitos: Estige, que significa "ódio", contém águas que são veneno mortal, mas que também podem conferir imortalidade; Aqueron quer dizer "fluxo de angústia"; Cocytus, "lamentação"; Aornis, "desprovido de pássaros"; Letes, "esquecimento" e Flegethon, "combustão". Todas essas imagens têm a fragrância do sentimento do Plutão astrológico.
O veneno do Estige é como o ácido do ressentimento profundamente enterrado, o que representa uma típica manifestação plutônica Essa irreconciliável amargura nos cria uma associação com as figuras das rancorosas Erínias, as servas da Justiça. Existe, sem dúvida, um veneno de vingança em Plutão, o encolerizado fantasma de Clitemnestra que força as Erínias, a perseguirem seu filho Orestes. Aqui não há compaixão, nem cura; apenas ódio cego e interminável. Sabemos através dos nossos tradicionais textos de astrologia que os nativos de Escorpião são bastante rancorosos, e não esquecem desprezo e injúrias. Plutão tampouco. A experiência do planeta frequentemente lança uma pessoa em sua própria potencialidade, antes não percebida, de ódio profundo, duradouro e inflexível. Moira, enquanto natureza, não esquece um insulto, nem deixa passar impune uma violação. O espírito do mito cristão, com sua figura piedosa e compassiva, é a antítese direta de Eresquigal, que representa o coração perverso da natureza que não consegue esquecer o próprio sofrimento. Tolkien personifica esse venenoso coração da natureza na figura do Velho Salgueiro no Senhor dos Anéis:
As palavras de Tom desnudam os corações e os pensamentos das árvores, os quais eram no mais das vezes escuros e estranhos, e repletos de ódio pelas coisas que andam livres sobre a terra, roendo, mordendo, despedaçando, queimando, cortando: destruidores e usurpadores... Mas nenhuma era mais perigosa do que o Grande Salgueiro: seu coração estava carunchado, mas sua , força era nova: ele era esperto e um mestre dos ventos; seu canto e seu pensamento percorriam os bosques de ambos os lados do rio. Seu velho e sedento espírito tirava força da terra e espalhava-se como finas raízes pelo chão e invisíveis galhos delicados no ar, até que ele tinha sob seu domínio quase todas as árvores da Floresta da Divisa até as Colinas.
O rio de ódio e de veneno que rodeia o inferno é igual ao Velho Salgueiro no coração da floresta, e ele nem sempre está consciente na pessoa. Na maioria das vezes, não nos damos conta de sua existência e pensamos em nós mesmos como pessoas decentes que conseguem perdoar uma ofensa alheia; em vez disso, porém, sofremos de doenças misteriosas e de distúrbios emocionais e, sutilmente, sabotamos nossos companheiros, pais, amigos, filhos e nós mesmos sem reconhecer por completo que em alguma parte possamos vê-los como "destruidores e usurpadores" que devem ser, forçosamente, punidos.
Aqui também talvez seja apropriado um ritual, e o mito com certeza nos oferece um. O ódio de Eresquigal é abrandado pelas carpideiras de Enqui, duas pequenas criaturas que o deus do fogo Enqui modela da sujeira por baixo de suas unhas. Essas pequenas carpideiras descem ao inferno e pranteiam ao lado de Eresquigal enquanto ela sofre e dá vazão ao seu ódio. Elas reconhecem a sua aflição, dão-lhe ouvidos, mostram empatia; não a julgam, nem a chamam de feia, perversa ou rancorosa, nem procuram induzi-la a "fazer" qualquer coisa a respeito disso. Elas representam uma qualidade que eu reputo ser essencial na abordagem de Plutão e que muitos psicoterapeutas chamam de capacidade de "estar com" alguém. E a capacidade de fornecer um recipiente para as águas envene¬nadas sem a necessidade de "modificar" as coisas. As Erínias também são aplacadas, no mito de Orestes, pelo mesmo suave reconhecimento. Atena escuta-as, não discute ou condena, mas, ao contrário, lhes oferece um altar e um respeitoso culto em troca da vida de Orestes.
A descoberta da própria venenosidade é um dos aspectos menos atraentes de um confronto com Plutão. As carpideiras de Enqui e Atena nos fornecem um modelo mítico de um tipo de autopercepção que se move entre severo autojulgamento e estúpida autocompaixão. Isso impõe um reconhecimento da necessidade ou inevitabilidade do ódio, através da empada com a coisa ofendida. Do ponto de vista de Eresquigal, a vida está completamente corrompida. Ela foi estuprada e exilada no inferno, e todos, particularmente sua livre e alegre irmã Inanna, devem sofrer por isto. As pequenas carpideiras não concordam nem discordam, não acusam nem racionalizam. Simplesmente ouvem e aceitam a aflição e a amargura dela. A fúria de Plutão, quando irrompe de dentro ou vem de fora, é terrível, talvez mais ainda quando e encontrada no lado de dentro, pois a gente fica com medo de destruir essas coisas que ama. Por isso, a fúria e reprimida e fica corroendo no inferno da psique.
No mito sumeriano, as carpideiras oferecem uma alternativa tanto para a repressão quanto para a expressão da raiva em comportamentos externamente destrutivos que, no final das contas, não curam a chaga. Pôr-se no lugar das carpideiras é mais difícil do que parece, todavia, pois mesmo que se consiga enfrentar este instinto vingativo e destruidor dentro de si mesmo, a tentação de "transformá-lo" e irresistível. O ego gosta muito de querer mudar tudo que ele encontra na psique de acordo com seus próprios valores e padrões, e o veneno de Plutão provoca uma resposta previsível: agora que vi minha feiura, acho-a desprezível e preciso curá-la. No entanto, as carpideiras de Enqui não estão preocupadas em curar Eresquigal. Elas conseguem enxergar os dois lados da questão: a necessidade de salvar Inanna e a legitimidade da fúria de Eresquigal.
Enqui, o deus do fogo, que moldou essas criaturas, é o correspondente sumeriano de Loge, no mito teutônico, e de Hermes, no grego. Ele não toma o partido de ninguém, mas seu objetivo é visualizar todo o esquema, e pode amar todos os protagonistas já que eles fazem parte do grande teatro. Acho, aliás, duvidoso que Eresquigal seja, na verdade, "curável". Seguramente ela não se mostra apta a responder às solicitações do ego, a não ser quando ela própria o deseja, se é que de fato alguma vez o deseja.
Letes é o rio do abençoado esquecimento, no qual as almas dos mortos submergem antes de voltarem ao mundo para uma outra encarnação. Os que creem na reencarnação como uma filosofia real podem considerar o fato de que misericordiosamente não recordamos dos nossos destinos quando nascemos como uma bênção de Plutão. Ou podem tomá-lo num sentido mais simbólico: não só esquecemos misericordiosamente o que está escrito para nós no nascimento, como também não nos lembramos muito bem como era a Grande Região Inferior depois que passamos por uma experiência platônica. Tendo conseguido emergir do inferno, assim como Orfeu somos ordenados por alguma voz Intima a não olhar para trás e, depois que o trânsito ou progressão termina, alegremente anunciamos quão produtivo, enriquecedor e inspirador de crescimento tudo isso foi. Não nos recordamos desse lugar, pois se o fizéssemos, perderíamos a coragem para enfrentar a futura e próxima volta do Grande Círculo. Letes e uma dádiva de Plutão; é uma imagem de maleabilidade psíquica, e a capacidade de esquecer o sofrimento. Não que Plutão não ofereça riquezas. Acho que necessariamente temos de esquecer depois o preço que pagamos por elas, a fim de que não sejamos envenenados pelo Estige e jamais perdoemos a existência.
Ademais, acho que as experiências de Plutão muitas vezes coincidem com uma lembrança do que estava esquecido, com uma redescoberta da aflição, fúria e do ódio que foram paralisados e empurrados para o subconsciente pelo ego para sua própria sobrevivência.
O psicoterapeuta está familiarizado com o miasma de ódio e de raiva inflamados, tanto dos paia quanto da própria pessoa, que irrompem quando as ofensas, as rejeições e as humilhações inconscientes da infância vêm à luz. Onde Plutão é encontrado no horóscopo, há quase sempre um esquecimento, uma repressão necessária e uma tendência à recordação inesperada e à erupção vulcânica de veneno sobre um objeto que talvez não passe apenas de um catalisador. Parece haver uma relação entre Plutão e aquilo que Freud entende por repressão (que não é realizada intencionalmente por um determinado ato de consciência, mas ocorre como um instinto de sobrevivência, através de uma espécie de censura inconsciente). São essas as coisas que devemos esquecer por algum tempo, a fim de podermos viver.
Existem desejos "reprimidos" na mente... Quando digo que existem esses desejos, não estou fazendo uma declaração histórica no sentido de que eles outrora existiam e foram depois abolidos. A teoria da repressão, que é essencial para o estudo das psiconeuroses, afirma que esses desejos reprimidos ainda existem — embora haja uma inibição simultânea que os reprime.
Podem-se fazer algumas eruditas conjeturas a respeito da natureza dos "desejos" reprimidos de Plutão, como também a respeito das excelentes razões para a "inibição simultânea" que bloqueia a entrada deles na vida consciente. Freud, que tinha Escorpião no ascendente, formulou-as muito bem no seu conceito do id. Elas são demasiado violentas, vingativas, sanguinárias, primitivas e perigosas para que a pessoa comum se sinta muito à vontade ou segura com a sua intrusão. A par dos "desejos", pode-se incluir lembranças, experiências de grande intensidade emocional que são esquecidas juntamente com seus objetos. Assim, largas fatias de infância caem debaixo da faca do censor — fatias estas que revelam o rosto selvagem do jovem animal lutando por autossatisfação e pela sobrevivência.
Juntamente com o veneno, potencialidades também podem ser reprimidas, para não dizer que uma coisa poderia desencadear a outra. A criança que está sujeita à fúria possessiva da mãe ou ao gélido desinteresse do pai, cada vez que se senta para brincar com a massa de argila ou com tintas e comete a afronta de recolher-se à sua própria psique individual, irá crescer e tornar-se o adulto "sem criatividade" que por alguma insondável razão não consegue sequer tentar levar o lápis ao papel, preferindo, ao contrário, viver no crepúsculo cinzento de uma vida sem brilho e sem expressão, com inveja de todos os que sabem se expressar melhor, em vez de arriscar-se a recordar o preço pago por aqueles esforços criativos iniciais. A criança que atrai para si o ciúme dos pais por ser inteligente, bonita e independente demais, se transformará no adulto que sabota a si mesmo toda vez que está na iminência de ter sucesso na vida, em vez de arriscar-se à terrível competição com os pais, sem o apoio dos quais ela não pode viver. Não se quer interromper a monotonia, o esquecimento, mesmo que isso signifique que o surgimento ou o desenvolvimento de um talento nascente será sacrificado. Essa atitude é melhor e mais fácil do que enfrentar os sentimentos violentos dos pais, dos irmãos e de si mesmo. Mais tarde, frequentemente sob trânsitos e progressões relacionados com Plutão, nos lembraremos do que havíamos esquecido, do medo, do sofrimento, do desejo e da raiva. Então, é preciso fazer um retorno ao mesmo lugar, passando pela mesma depressão, angústia e desgosto por si mesmo. No entanto, a Jornada posterior é mais uma espiral do que um círculo, pois é a criança dentro do adulto quem recorda, e o adulto poderá, talvez, ajudar a criança a suportar e a controlar o sofrimento.
Tártaro é, por vezes, o nome dado no mito a todo o reino de Hades. Bastante amiúde ele se refere a um tipo de sub-reino, a uma cidadela, por assim dizer, que está próxima por natureza ao conceito medieval de Inferno. É do Tártaro que a prole da Mãe Noite sai para atormentar os vivos e punir as blasfêmias e os pecados da família contra a linhagem matriarcal. No Tártaro, as almas dos maus ficam aprisionadas em imutável tormento durante toda a eternidade. Contudo, é um mundo radicalmente diferente do Inferno cristão. O tormento no Tártaro e descrito por meio de imagens de desejo frustrado, e não de indiscriminada tortura sádica. Os pecados também são diferentes. Quando viajamos com Dente pelos círculos do Inferno, encontramos um catálogo previsível de pecadores medievais: o adúltero, o usurário, o sodomita, o blasfemador. Encontramos, além disso, alguns rostos pagãos familiares, pois o cristianismo de Dante não era assim tão cristão: a Fortuna ou o Destino com a sua Roda, Cérbero e Dis (Hades) de três cabeças. Todavia, o inferno de Dente e um reflexo da Obsessão da Idade Média com a execração do mundanismo e da sexualidade.
No Tártaro, as coisas são diferentes. Os pecados de homens contra homens, em particular os pecados carnais, não são dignos do nome. Hubris, por outro lado, recebe a punição justa. As figuras míticas aprisionadas no Tártaro são homens e mulheres que ultrapassaram seus limites, transgrediram a lei natural, Insultaram Moira e desafiaram os deuses. Eles cobiçaram uma deusa, zombaram de uma divindade ou vangloriaram-se de serem maiores do que os habitantes do Olimpo. A lei de Plutão não é aquela feita de elaborações sociais e jurídicas, nem de preocupação com o comportamento civilizado do grupo. Sendo ele próprio um estuprador, Plutão não julga os desejos sexuais alheios. Ele não é Saturno, e se mostra desinteressado com o que os homens fazem uns aos outros no mundo da forma. Ele não é um patriarca, mas, ao contrário, um matriarca. Assim, Sísifo rola eternamente sua rocha montanha acima e terá sempre de vê-la rolar montanha abaixo até o fundo outra vez, para todo o sempre, visto que ele revelou os divinos segredos de Zeus. Tântalo arrasta-se eternamente em direção à água e ao fruto que estão sempre fora de seu alcance, visto que ele insultou e ridicularizou os deuses. Íxion gira eternamente na sua roda de fogo, porque tentou estuprar Hera, a rainha dos deuses. Todas essas imagens são formulações de frustração, de interminável desespero, de combustão interior (tal como o rio Flegethon), de humilhação e de nemesis como castigo por arrogância e orgulho.
Ser posto sobre a roda como punição (a exemplo de Íxion é ser posto num lugar arquetípico, atado às voltas da fortuna, ás voltas da Lua e da sorte e às infindáveis repetições de voltar eternamente à mesma experiência sem descanso... Rodas são círculos fechados e o círculo fecha-se em torno de nós quer no anel de casamento, na coma de louros, ou na coroa funerária.
A irrevogável rotação do destino, seja para o ganho seja para a perda, é característica de Plutão. Assim também é a experiência do desejo frustrado. O que desejamos mais do que qualquer outra coisa antes e que, no entanto, é a única coisa que não podemos ter, ou que só podemos ter mediante grande sacrifício ou mediante a morte de alguma parte estimada de nós mesmos — tudo isso é típico de Plutão. Naturalmente, a arena sexual é um dos lugares mais evidentes em que esse tipo de experiência ocorre. Assim também é a arena do poder e da posição. Poder e sexualidade, poder ou perda de poder pela sexualidade, são temas intrínsecos a Plutão. Ao que parece, os escandinavos sabiam disso' quando duplicaram o sentido dessa palavra para designar o destino e os órgãos genitais. Acho que nem sempre fica claro saber se o poder está nas mãos de quem é poderoso ou se está nas mãos do que se submete a ele, pois ambos são aspectos da mesma figura, assim como Perséfone pertence ao Hades. A necessidade, a ganância e o desejo provêm de ambos e, onde quer que Plutão esteja presente numa situação em que uma das partes tenha que se submeter à outra que é mais poderosa, talvez seja importante lembrar que quando esse planeta está envolvido, ninguém jamais está isento de culpa.
Confrontados com Plutão, deparamo-nos com nossas detestáveis compulsões, insaciáveis paixões: o impossível e o repetitivo esquema de luta com algo apenas para que o encontremos outra e outra vez. Tártaro descreve, em linguagem mítica, a escuridão, a ganância e a patologia humanas. Ele abrange a doença, a crueldade, a combustão, a obsessão, a frieza gélida e o desejo perpétuo. Essas atormentadas figuras nos informam algo mais a respeito de Plutão: ele nos faz lembrar repetidas vezes da coisa incurável, do lugar da ferida intratável, do lado psicopata da personalidade, do rosto ultrajado e contorcido das Górgonas. Ele é a coisa que nunca melhora.
Uma das imagens da alquimia para esse ganancioso, desejoso, violento e irreparável aspecto da natureza é o lobo, que deve ser posto no alambique com o rei. O lobo destrói o rei e é, depois, ele mesmo queimado em fogo lento até que só fiquem as cinzas. Se essas coisas realmente se transformam, só o fazem através do fogo; e o rei, que personifica o domínio e o sistema de crenças do ego, deve morrer primeiro. Plutão é, por conseguinte, um grande e divino estabilizador da hubris. Sem ele o homem se julgaria Deus, e acabaria se destruindo: uma situação que se toma cada vez mais provável com o decorrer do tempo. Defrontado com Plutão, assim como a criancinha se defronta com a mãe, a pessoa vivencia o círculo intransponível das limitações da alma, das limitações do destino, que não são os limites mundanos de Saturno, mas sim a característica mais profunda de sua vulnerabilidade e mortalidade.
Os estados circulares de repetitividade, as voltas e mais voltas no círculo de nossas próprias condições, forçam-nos a reconhecer que essas condições constituem a nossa própria essência e que o movimento circular da alma não pode ser diferenciado do destino irracional.
Plutão, ao que parece, governa o que não pode ou não quer mudar. Esse é um problema, particularmente espinhoso numa época de autoterapias e do aumento da crença na ideia de que uma pessoa pode se transformar no que quiser, desde que conheça as técnicas, os livros ou os guias espirituais certos. Humildade perante os deuses é uma virtude antiga, promovida não só pela Bíblia, como também pelos gregos. "Nada em excesso" — nem mesmo a autoperfeição — estava gravado na porta do templo dedicado a Apoio em Delfos, ao lado de "Conhece-te a ti mesmo". Eram essas as principais exigências que os deuses faziam aos homens. Mas é justamente essa questão que Plutão nos obriga a confrontar.É uma ironia e também um paradoxo que a aceitação legítima do imutável seja, com frequência, uma das chaves para a verdadeira e profunda mudança no interior da psique. No entanto, esse pequeno exemplo de ironia, que teria caído sob medida ao contraditório Apoio, não parece passível de ser aprendido em nenhuma escola e sim nas provações da vida. Portanto, ele permanece um segredo, não porque ninguém o irá revelar, mas porque ninguém irá acreditar nele, a menos que tenha sobrevivido à provação.
Dessa forma, Plutão, como um símbolo do destino punitivo, rege o lugar onde a vontade não tem mais eficácia. Terapias, meditações, dietas e encontros não chegam até lá, e a decisão não mais reside em saber se devo agir certo ou errado, mas se devo sacrificar meu braço esquerdo ou direito. Esse deus é uma imagem de nossa servidão, humilhação e violação. Penso que a questão da hubris, a ofensa contra os limites circunscritos e contra o destino, jaz no âmago do significado do planeta. Repetições desse tema também hão de ser encontradas no mito relativo ao signo de Escorpião, pois o escorpião nos mais antigos mitos sumerianos, babilônicos e egípcios, e também no grego clássico, é invariavelmente a criatura enviada por uma divindade zangada para punir a hubris de alguém.
Desde a sua primeira expressão em grego e latim, o mito de Escorpião tem sido relacionado com o desastre que atingiu Orion, o grande caçador cuja hubris o levou a ofender os deuses. O Escorpião atacou e matou-o, emergindo repentinamente das entranhas da terra — de um mundo além do qual Orion, o agredido, pertence. Pelo que sei, não existe nenhum texto astrológico no qual esse elemento de súbita e destrutiva agressividade não apareça como uma característica essencial de Escorpião. O simbolismo astrológico expressa esse fato atribuindo Escorpião a Ares (Marte), o deus ígneo e agressivo, senhor das catástrofes violentas e dramáticas; desse modo, confere imediatamente a Escorpião o significado central de um colapso no equilíbrio pela irrupção, das sombras, de um assaltante desconhecido... Escorpião, o signo da criatura que surge de umidades ctônicas, é de fato caracterizado cada vez mais claramente como o signo da impureza, da natureza primitiva, caótica, discordante, abominável, e que se revela por súbitas e perigosas irrupções.
Essa atraente descrição parece coincidir com o que temos visto de Plutão. É quase desnecessário acrescentar que, no mito de Orion, o escorpião gigante que destrói o grande caçador devido à hubris deste é mandado por Ártemis-Hécate, "senhora dos caminhos noturnos, da sorte e do mundo dos mortos".
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sexta-feira, 20 de maio de 2016
domingo, 5 de junho de 2011
O Destino e o Feminino, por Liz Greene (3)
Vale a pena examinar o que dizem dois outros escritores sobre esses temas. Um deles é Johann Jakob Bachofen, jurista e filósofo social suíço do século passado, cuja abordagem poética do mito faz um agradável contraponto à admiravelmente sutil definição do mito registrada no Concise Oxford Dictionary, como "uma história inverídica".
Assim, a atividade da natureza, sua criação e formação engenhosas eram simbolizadas na fiação, no trançado e na tecelagem; todavia, essas tarefas relacionavam-se, ainda de outras maneiras, com a obra de criação telúrica. Na tecedura de dois fios, podia-se perceber o poder duplo da natureza, a interpenetração dos dois princípios sexuais, requisito indispensável para toda geração. O sexual estava ainda mais manifesto na ação do tear. Essa relação psico-erótica também compreende a idéia de fatum e de destino. O fio da morte é tecido na teia de que todo organismo telúrico consiste. A morte é a suprema lei natural, o fatum da vida material, diante da qual os próprios deuses se curvam e sobre a qual não podem pretender ter domínio. Assim, a trama da criação telúrica torna-se a trama do destino; o fio torna-se o mensageiro do destino humano e Eileitéia, a parteira, a boa fiandeira, torna-se a grande Mova que é ainda mais velha do que o próprio Crono. O tear, veículo da suprema lei da criação escrita nos astros, era atribuído às divindades celestes na sua celestial natureza. E, finalmente, essa vida humana e o cosmo inteiro eram vistos como uma grande trama do destino.
Excetuando-se sua obsessão pela palavra "telúrico", Bachofen realmente não precisa ser parafraseado, de forma que o citei literalmente. Aqui, em sua intricada rede de relações, podemos começar a ver o ponto a partir do qual a própria astrologia — Heimarmenê, a "compulsão planetária" ou a lei natural do céu e da terra — é fragmento e parte do corpo celestial da Grande Mãe. Esse é um mito da criação que antecipa Javé do Velho Testamento, pois aqui o original poder criativo no cosmo é a grande deusa Moira. Essa organização harmoniosa das esferas celestiais é o seu desígnio, e o deslumbramento que causa essa extraordinária imagem zomba delicadamente de nosso conceito ordinário de um destino que pode ser lido na borra do café deixado no fundo da xícara. É essa imagem que acho que tocamos e invocamos quando ponderamos sobre a roda do horóscopo, pois essa imagem antiga jaz em nós mesmos. Talvez seja assim que o corpo tenha uma experiência de si mesmo como possuindo uma duração determinada. A imagem de Moira não se apaga quando o intelecto racional sobe a alturas impressionantes. Posto que arcaica, ela simplesmente retorna ao mundo subterrâneo de onde surgiu há muito tempo atrás e onde a fiação e a tecelagem continuam despercebidas e sem interrupção, apenas para emergir à luz do dia como uma experiência de "meu destino".
Vou citar uma outra passagem de Bachofen, pois iremos ver, mais adiante, sua relevância.
Nas escuras profundezas de ogygianas da terra, elas tecem toda a vida e enviam-na para cima, para a luz do sol; e na morte tudo retorna a elas. Toda a vida salda seu débito para com a natureza, isto é, para com a matéria. Desse modo, as Erínias, assim como a terra à qual pertencem, regem tanto a morte quanto a vida, pois ambas são abarcadas pelo ser material, telúrico. . . No seu outro aspecto, as amáveis Eumênides são as terríveis e cruéis deusas, hostis a toda vida terrestre. Nesse aspecto, elas se comprazem na catástrofe, no sangue e na morte; nesse aspecto, são monstros detestáveis, sanguinários e horrendos, a quem Zeus "declarou proscritos". Nesse aspecto, elas distribuem ao homem sua merecida recompensa.
Quando as Erínias entram em cena em Orestéia a última peça de Ésquilo, é essa face mais sombria que mostram:
Nossa missão é justa e sanguinária, não somos jamais enviadas para ferir os inocentes. Mostre-nos suas mãos. Se estiverem vermelhas, você dormirá profundamente no seu leito. Mostre-nos suas mãos. Esquerda. Direita.
Você será poupado se elas estiverem brancas. Mostre-nos suas mãos. Sabemos que há alguém cujas mãos estão vermelhas e não ousa mostrá-las.
Para homens iguais a este cujas mãos estão vermelhas, trazemos o rancor sanguinário dos mortos.
A deusa da vida nos deu estes poderes,
que são nossos, para todo o sempre nossos. Quando surgimos, os confins estavam demarcados. Nós e os Olímpicos não temos relações íntimas.
O alimento é oferecido a um dos dois, mas não a ambos. Não usamos vestes brancas, nem eles usam vestes negras.
Não tenho nenhuma dúvida de que nós também, neste século, a exemplo de Zeus, os proscrevemos. Desde o início da era cristã nossos deuses têm usado apenas trajes brancos. Contudo, essas coisas permanecem como imagens eternas nas profundezas. Veio-as com tanta freqüência nos sonhos de virtualmente todos os pacientes que tenho analisado, que não acho que seja diferente. Na tragédia de Esquilo, elas atormentam Orestes até a loucura pelo assassínio da mãe, apesar de o próprio Apoio exigir essa chacina; e Ésquilo oferece-nos visão muito interessante sobre o modo pelo qual este aspecto retaliativo do destino, que pune o transgressor da lei natural, poderia ser observado no homem moderno.
Mesmo um século após Ésquilo, os homens Já não mais acreditavam naquelas temíveis damas com garras em vez de pés e serpentes em vez de cabelos, asas de abutre e vozes de mocho. Há muito que o mundo ocidental já as deixou para trás. Todavia, uma visita ao hospital psiquiátrico mais perto pode, efetivamente, nos reintroduzir à sua atual manifestação desincorporada. Gostaria de sugerir que a pessoa homem ou mulher, que transgride com demasiada brutalidade a lei natural de seu próprio ser talvez corra o risco de pagar o preço naquilo que agora conviemos chamar de "doença mental". Não existe nenhuma justiça nisto, pois essas transgressões em geral são feitas inconscientemente, e não se pode culpar a pessoa por aquilo de que ela é ignorante. No entanto, as Erínias não são justas sequer no modo como tratam Orestes; ele não tem escolha alguma e é coagido a cometer seu assassinato pelo deus Apoio, ainda que, não obstante, tenha de pagar o preço. Pessoalmente, às vezes, acho mais criativo considerar as Erínias como guardiãs da lei natural, em vez de recorrer a termos que não compreendo cabalmente, tais como esquizofrenia, mas, sem dúvida, qualquer pessoa que clã atenção às Erínias hoje em dia é um esquizofrênico. Seja como for, acho imensamente valioso saber, quando se trabalha como astrólogo, de que forma as leis naturais são representadas pelo horóscopo e em que esfera uma "transgressão" está sendo perpetrada, intencionalmente ou não; e se e de que modo essa transgressão poderia ser corrigida, a fim de que as Erínias não persigam aquela pessoa interna ou externamente, na qualidade de um "destino desfavorável".
O terceiro escritor que contribuiu com interpretações decisivas para o misterioso complexo de imagens psicológicas sobre o destino, o inconsciente, a mãe e o mundo, é Erich Neumann. No seu livro A Grande Mãe, ele escreve:
A sensação vital de toda consciência do eu que se percebe diminuído com relação às potestades é dominada pela preponderância do Grande Círculo que contém toda mudança. Este arquétipo pode ser vivenciado exteriormente enquanto mundo ou natureza, ou interiormente enquanto destino e inconsciente. . . Assim, o aspecto terrível do Feminino inclui sempre a urobórica mulher-cobra, a mulher provida de falo, a união entre a gravidez e a procriação, entre a vida e a morte. . . Na Grécia, a Górgona na figura de Ártemis -Hécate é também a regente dos caminhos noturnos, do destino e do mundo dos mortos.
A essa altura, poder-se-iam lembrar as feiticeiras barbadas de Macbeth, que são mulheres fálicas: o feminino que contém sua própria força procriadora ou geradora. Essas mulheres criam e destroem a vida de acordo com suas próprias leis, e não com as de um esposo, consorte ou rei. A Noite-Mãe ou a deusa Necessidade dá origem às Moiras e às Erínias por partenogênese, ou seja, sem o auxilio do esperma masculino. O trecho acima citado contém algo que acho extremamente importante que o astrólogo leve em conta: a pessoa mais aterrorizada pelo destino e mais intimidada pelo que ela vivencia como suas inclinações mais sombrias e mais destrutivas da alma e da vida, é a pessoa na qual o sentimento do ego, o sentimento de "eu mesmo", é o mais fraco. Isso traz consigo certa implicação para o próprio estudioso de astrologia, pois que muitos de nós aprendemos nossa arte por essa simples razão e compartilhamos esse problema com nossa clientes. Uma consciência desse problema comum pode ser imensamente criativa, mas uma inconsciência dele favorece exatamente as Erínias e reforça o temor ao destino.
Quando as Erínias cantam que "o alimento é oferecido a um dos dois, mas não a ambos", elas estão enunciando um dilema comum: ou vivemos aterrorizados pelo destino, pelo fato de que ainda não encontramos nenhum sentido de genuína individualidade, ou repudiamos a própria idéia de destino exatamente pela mesma razão. Assim, o astrólogo não só é conivente com seu cliente, como também com o exacerbado cético, que tem medo da mesma coisa. Assim como o psiquiatra se identifica secretamente com seu louco paciente, o problema do destino nos compromete não só com os que temem o aspecto retaliador da vida, senão também com os que rejeitam qualquer outra coisa que não a autonomia da consciência racional. Embora não esteja certa sobre as ramificações disso, desconfio que ela se deve parcialmente ao fato de que tão amiúde a astrologia se lança sobre o inconsciente, de outra parte à razão pela qual a apaixonada acumulação de estatísticas tornou-se necessária e parte ainda ao fato de que o astrólogo individual se sente quase sempre perseguido pelas pessoas "normais". Ora, não estou insinuando que um forte sentimento de identidade pessoal faça com que o destino desapareça. Não seria tão estúpida a ponto de sugerir tal coisa, nem Newmann o seria, a meu ver. No. entanto, o ato de entrar em acordo com o "meu destino" de uma maneira criativa, e não afetada pelo medo, talvez resida, em grande parte, no sentimento que cada um possui de ser um indivíduo.
Neumann prossegue dizendo:
O macho permanece inferior e à mercê do Feminino que o afronte como um poder do destino... O símbolo de Odin dependurado na árvore do destino é típico deste estágio em que o herói-rei era caracterizado meramente pela aceitação da sorte. . . Essa sorte pode aparecer na forma de uma velha e maternal mulher, que preside o passado e o futuro; ou na forma de uma jovem e fascinante figura, como a alma.
O autor esforça-se para assinalar que, quando ele está se referindo ao "ego masculino", não está com isso falando de homens, mas, ao contrário, aludindo ao centro de consciência tanto nos homens como nas mulheres, que é "masculino" no sentido de que é dinâmico, motivado para a diferenciação. Em resumo, ele se assemelha ao Sol em contraste com as difusas e nubladas profundidades lunares do Inconsciente. Tenho absoluta certeza de que o Sol, astrologicamente considerado, constitui um ponto no horóscopo que talvez seja mais acessível aos homens em geral, porque representa uma motivação masculina, orientada para uma meta; o Sol, todavia, significa a mesma coisa no horóscopo de uma mulher, sendo, além disso, o símbolo da consciência diferenciada do ego em ambos os sexos. Nesse sentido, Neumann não está nem um pouco preocupado com questões "sexológicas", e seria absurdo interpretá-lo assim. Ele está falando sobre um dilema com que se defrontam tanto os homens como as mulheres: o sentimento de impotência e de inutilidade que todos nós experimentamos diante dessas constrangedoras erupções da psique que se abatem sobre nós como o destino, por um lado. Não se pode deixar de ver, por outro lado, implícita nessa passagem uma das raízes arquetípicas daquele terror que com tanta freqüência se insinua nos relacionamentos entre macho e fêmea, nos quais a mulher afigura ser, por projeção ou talvez na realidade, a mensageira do destino para o homem. E este, irado e ameaçado pelas "forças" sobre as quais não tem nenhum controle, tenta, assim como Zeus, declarar proscrito o valor da mulher.
O mistério primordial da tecedura e da fiação tem sido também vivenciado na projeção sobre a Grande Mãe que tece a trama da vida e fia o fio do destino, sem importar se ela aparece como uma Grande Fiandeira ou, como ocorre tão freqüentemente, numa tríade lunar. Não é por acaso que falamos em tecidos do corpo, pois o tecido composto pelo Feminino no cosmo e no útero da mulher é a vida e o destino. E a astrologia, o estudo de um destino governado pelos astros, ensina que ambos começam ao mesmo tempo, no momento temporal do nascimento.
O problema do poder ameaçador que o ego experimenta como uma propriedade do inconsciente não é, conforme tenho dito, uma questão sexológica. E uma questão humana, ao que me parece, e tenho encontrado tanto mulheres que correm de medo de suas próprias profundezas, quanto homens dominados pelo mesmo temor. Não obstante, o medo talvez seja o começo de sabedoria, segundo nos ensina o Velho Testamento, pois esse medo do poder do destino é, no mínimo, um reconhecimento. Estou, portanto, inclinada a questionar se é válido dizer a um cliente que veio em busca de uma leitura de horóscopo, que um mapa astral "apenas" sugere potencialidades que ele poderá superar ou dominar como preferir. Não estou sugerindo que devamos regredir a um nível arcaico, onde o ego retroceda ao terror primitivo e à aceitação passiva do destino que caracteriza tanto as culturas antigas como a criança moderna. Empenhamo-nos durante vários milênios em sermos capazes de fazer algo mais do que isso. Mas a hubris, em compensação, não erradica a imagem arquetípica do destino que reside nas profundezas da psique do cliente e do astrólogo. Tampouco essa atitude poupará o cliente de seu destino.
O destino feminino que estamos investigando constitui, em certo sentido, o paralelo psíquico dos padrões genéticos herdados da linhagem familiar. Ou, num sentido mais amplo, é a imagem arquetípica para os instintos mais primitivos que se contorcem dentro de nós. Esse é o destino de partilha, de fronteiras ou de limites que não podem ser cruzados. É o circulo além do qual a pessoa não pode passar durante a sua existência, sejam quais forem as potencialidades ilimitadas que possa perceber em si mesma, visto que gerações construíram esse círculo pedra sobre pedra. O destino e a hereditariedade, por conseguinte, estão intrinsecamente ligados, e a família representa um dos grandes instrumentos do destino. Mais tarde, vamos examinar melhor essa questão.
Quando vista sob essa luz, Moira é um dos impulsos inatos na psique individual e coletiva e sua função é manter a justiça e a ordem no reino natural dos instintos. Visto que nossos impulsos básicos estão representados, no simbolismo astrológico, pelos planetas, é razoável supor que o antigo princípio retaliador de Moira esteja configurado no horóscopo por um dos planetas, assim como por quaisquer outros signos e casas relacionados com esse planeta. Ademais, é razoável supor que, visto termos proscrito o destino e fingirmos, nos dias de hoje, que ele não existe, sejamos igualmente ignorantes dessa dimensão de seu significado dentro da astrologia. Em certa medida, poderíamos ainda considerar que a imagem que preside o destino retaliador é a imagem de um instinto para fixar fronteiras proscritas dentro de uma pessoa. Moira é a guardiã do direito natural dentro do indivíduo, e ela é tão necessária para o equilíbrio do corpo e da mente quanto outros e mais extrovertidos e transcendentais impulsos.
Acho muito produtivo, na interpretação de símbolos astrológicos, ser por vezes descaradamente não-racional e trabalhar com imagens que esses símbolos evocam, em vez de fazer conceituações ou reduzir a palavras-chave essas antigas e sagradas figuras que por tantos séculos foram percebidas e vivenciadas como deuses. Ainda não sabemos, realmente, o que elas são. É mais aceitável agora, para os propósitos de avaliação e de compreensão coletiva, chamá-las de impulsos, motivações ou desejos arquetípicos. Mas acho que o astrólogo, e também o analista, podem tirar proveito do método de ampliação, de Jung, a fim de se acerarem mais da essência da linguagem astrológica. Poderíamos, inclusive, ir além e visionar a experiência astrológica como o encontro com uma divindade, um numen, em vez de raciocinar em termos de motivações ou desejos. Pois essas coisas não são as mesmas? Talvez nem sempre seja sensato apropriar-se de tudo o que existe dentro de nós como se fosse "meu", quer dizer, propriedade do ego. Nossos impulsos inatos, no final das contas, não estão mais sujeitos à dissecação e ao controle racional, do que os daimones de Platão, que são dados a cada pessoa no nascimento e moldam seu caráter durante toda a existência. Poderia ser importante admitir, particularmente quando estamos lidando com coisas semelhantes ao destino, que existem aspectos de nossas "motivações" que nos ultrapassam, que são transpessoais, independentes, até mesmo infernais ou divinos.
Encontrar determinado planeta em um signo e em uma casa zodiacal é como entrar num templo e encontrar a manifestação de um deus desconhecido. Podemos encontrar essa divindade como uma experiência concreta "exterior" ou por intermédio de uma outra pessoa que é a máscara através da qual o rosto do deus se mostra; através do corpo; através de uma ideologia ou visão intelectual; através de uma atividade criativa; como uma emoção motivadora. Muitas vezes, vá-rias dessas manifestações são vivenciadas juntas, tornando-se difícil ver a unidade entre o que está acontecendo na vida exterior e o que está acontecendo na vida interior. Todavia, o planeta constrói uma ponte sobre o abismo entre o "exterior" e o "interior" e nos fornece uma ligação significativa, pois os deuses vivem nos dois mundos simultaneamente.
Encontrar a personificação de tudo o que até agora investigamos, destilado na imagem de Moira, é encontrar o que é compulsivo e primordial. É um confronto com a morte e o desmembramento, pois Moira quebra o orgulho e a vontade do ego em pedacinhos. Por ser ela imutável, nós é que somos transformados. Ela é mais forte do que os desejos e a determinação do ego, mais forte do que as razões do intelecto, mais forte do que o dever, os princípios e as boas intenções mais forte ainda do que a fé individual. Platão imaginou-a entronizada no centro do universo, com a roca cósmica assentada entre os seus joelhos, enquanto suas filhas, reflexos diferenciados de seu próprio rosto, guardam os limites da lei natural e punem os transgressores com intenso sofrimento. A sabedoria de Moira deve ser encontrada no desespero e na depressão, na inutilidade e na morte. Seu segredo é o que guia e fortalece a pessoa quando ela própria já não consegue mais se sustentar, e aquilo que a mantém atrelada ao seu próprio e único esquema de desenvolvimento.
A necessidade inata de descer do mundo das aparências para a "ligação invisível" e para a personalidade oculta leva ao mundo interior do que quer que seja dado. A necessidade autóctone da psique, seu desejo natural de compreender psicologicamente, assemelhar-se-ia àquilo que Freud chama de instinto de morte e àquilo que Platão introduziu como o desejo pelo Hades... Ele age através da destruição, dissolução, decomposição, separação e dos processos de desintegração necessários tanto à psicologia alquímica quanto à moderna psicanálise
Essa descrição feita por James Hillman sugere que a coisa que guarda as fronteiras circunscritas da natureza também procura conhecer a sua própria fiação: é o meu destino que busca a explicação de si mesmo. Essa deusa do destino, enquanto "serva da Justiça", é, a meu ver, representada com mais ênfase no panteão planetário da astrologia. Dentro do horóscopo, eu diria que aquilo que os gregos conheciam como as Erínias, a face retaliativa de Moira, nós costumamos chamar Plutão.
Assim, a atividade da natureza, sua criação e formação engenhosas eram simbolizadas na fiação, no trançado e na tecelagem; todavia, essas tarefas relacionavam-se, ainda de outras maneiras, com a obra de criação telúrica. Na tecedura de dois fios, podia-se perceber o poder duplo da natureza, a interpenetração dos dois princípios sexuais, requisito indispensável para toda geração. O sexual estava ainda mais manifesto na ação do tear. Essa relação psico-erótica também compreende a idéia de fatum e de destino. O fio da morte é tecido na teia de que todo organismo telúrico consiste. A morte é a suprema lei natural, o fatum da vida material, diante da qual os próprios deuses se curvam e sobre a qual não podem pretender ter domínio. Assim, a trama da criação telúrica torna-se a trama do destino; o fio torna-se o mensageiro do destino humano e Eileitéia, a parteira, a boa fiandeira, torna-se a grande Mova que é ainda mais velha do que o próprio Crono. O tear, veículo da suprema lei da criação escrita nos astros, era atribuído às divindades celestes na sua celestial natureza. E, finalmente, essa vida humana e o cosmo inteiro eram vistos como uma grande trama do destino.
Excetuando-se sua obsessão pela palavra "telúrico", Bachofen realmente não precisa ser parafraseado, de forma que o citei literalmente. Aqui, em sua intricada rede de relações, podemos começar a ver o ponto a partir do qual a própria astrologia — Heimarmenê, a "compulsão planetária" ou a lei natural do céu e da terra — é fragmento e parte do corpo celestial da Grande Mãe. Esse é um mito da criação que antecipa Javé do Velho Testamento, pois aqui o original poder criativo no cosmo é a grande deusa Moira. Essa organização harmoniosa das esferas celestiais é o seu desígnio, e o deslumbramento que causa essa extraordinária imagem zomba delicadamente de nosso conceito ordinário de um destino que pode ser lido na borra do café deixado no fundo da xícara. É essa imagem que acho que tocamos e invocamos quando ponderamos sobre a roda do horóscopo, pois essa imagem antiga jaz em nós mesmos. Talvez seja assim que o corpo tenha uma experiência de si mesmo como possuindo uma duração determinada. A imagem de Moira não se apaga quando o intelecto racional sobe a alturas impressionantes. Posto que arcaica, ela simplesmente retorna ao mundo subterrâneo de onde surgiu há muito tempo atrás e onde a fiação e a tecelagem continuam despercebidas e sem interrupção, apenas para emergir à luz do dia como uma experiência de "meu destino".
Vou citar uma outra passagem de Bachofen, pois iremos ver, mais adiante, sua relevância.
Nas escuras profundezas de ogygianas da terra, elas tecem toda a vida e enviam-na para cima, para a luz do sol; e na morte tudo retorna a elas. Toda a vida salda seu débito para com a natureza, isto é, para com a matéria. Desse modo, as Erínias, assim como a terra à qual pertencem, regem tanto a morte quanto a vida, pois ambas são abarcadas pelo ser material, telúrico. . . No seu outro aspecto, as amáveis Eumênides são as terríveis e cruéis deusas, hostis a toda vida terrestre. Nesse aspecto, elas se comprazem na catástrofe, no sangue e na morte; nesse aspecto, são monstros detestáveis, sanguinários e horrendos, a quem Zeus "declarou proscritos". Nesse aspecto, elas distribuem ao homem sua merecida recompensa.
Quando as Erínias entram em cena em Orestéia a última peça de Ésquilo, é essa face mais sombria que mostram:
Nossa missão é justa e sanguinária, não somos jamais enviadas para ferir os inocentes. Mostre-nos suas mãos. Se estiverem vermelhas, você dormirá profundamente no seu leito. Mostre-nos suas mãos. Esquerda. Direita.
Você será poupado se elas estiverem brancas. Mostre-nos suas mãos. Sabemos que há alguém cujas mãos estão vermelhas e não ousa mostrá-las.
Para homens iguais a este cujas mãos estão vermelhas, trazemos o rancor sanguinário dos mortos.
A deusa da vida nos deu estes poderes,
que são nossos, para todo o sempre nossos. Quando surgimos, os confins estavam demarcados. Nós e os Olímpicos não temos relações íntimas.
O alimento é oferecido a um dos dois, mas não a ambos. Não usamos vestes brancas, nem eles usam vestes negras.
Não tenho nenhuma dúvida de que nós também, neste século, a exemplo de Zeus, os proscrevemos. Desde o início da era cristã nossos deuses têm usado apenas trajes brancos. Contudo, essas coisas permanecem como imagens eternas nas profundezas. Veio-as com tanta freqüência nos sonhos de virtualmente todos os pacientes que tenho analisado, que não acho que seja diferente. Na tragédia de Esquilo, elas atormentam Orestes até a loucura pelo assassínio da mãe, apesar de o próprio Apoio exigir essa chacina; e Ésquilo oferece-nos visão muito interessante sobre o modo pelo qual este aspecto retaliativo do destino, que pune o transgressor da lei natural, poderia ser observado no homem moderno.
Mesmo um século após Ésquilo, os homens Já não mais acreditavam naquelas temíveis damas com garras em vez de pés e serpentes em vez de cabelos, asas de abutre e vozes de mocho. Há muito que o mundo ocidental já as deixou para trás. Todavia, uma visita ao hospital psiquiátrico mais perto pode, efetivamente, nos reintroduzir à sua atual manifestação desincorporada. Gostaria de sugerir que a pessoa homem ou mulher, que transgride com demasiada brutalidade a lei natural de seu próprio ser talvez corra o risco de pagar o preço naquilo que agora conviemos chamar de "doença mental". Não existe nenhuma justiça nisto, pois essas transgressões em geral são feitas inconscientemente, e não se pode culpar a pessoa por aquilo de que ela é ignorante. No entanto, as Erínias não são justas sequer no modo como tratam Orestes; ele não tem escolha alguma e é coagido a cometer seu assassinato pelo deus Apoio, ainda que, não obstante, tenha de pagar o preço. Pessoalmente, às vezes, acho mais criativo considerar as Erínias como guardiãs da lei natural, em vez de recorrer a termos que não compreendo cabalmente, tais como esquizofrenia, mas, sem dúvida, qualquer pessoa que clã atenção às Erínias hoje em dia é um esquizofrênico. Seja como for, acho imensamente valioso saber, quando se trabalha como astrólogo, de que forma as leis naturais são representadas pelo horóscopo e em que esfera uma "transgressão" está sendo perpetrada, intencionalmente ou não; e se e de que modo essa transgressão poderia ser corrigida, a fim de que as Erínias não persigam aquela pessoa interna ou externamente, na qualidade de um "destino desfavorável".
O terceiro escritor que contribuiu com interpretações decisivas para o misterioso complexo de imagens psicológicas sobre o destino, o inconsciente, a mãe e o mundo, é Erich Neumann. No seu livro A Grande Mãe, ele escreve:
A sensação vital de toda consciência do eu que se percebe diminuído com relação às potestades é dominada pela preponderância do Grande Círculo que contém toda mudança. Este arquétipo pode ser vivenciado exteriormente enquanto mundo ou natureza, ou interiormente enquanto destino e inconsciente. . . Assim, o aspecto terrível do Feminino inclui sempre a urobórica mulher-cobra, a mulher provida de falo, a união entre a gravidez e a procriação, entre a vida e a morte. . . Na Grécia, a Górgona na figura de Ártemis -Hécate é também a regente dos caminhos noturnos, do destino e do mundo dos mortos.
A essa altura, poder-se-iam lembrar as feiticeiras barbadas de Macbeth, que são mulheres fálicas: o feminino que contém sua própria força procriadora ou geradora. Essas mulheres criam e destroem a vida de acordo com suas próprias leis, e não com as de um esposo, consorte ou rei. A Noite-Mãe ou a deusa Necessidade dá origem às Moiras e às Erínias por partenogênese, ou seja, sem o auxilio do esperma masculino. O trecho acima citado contém algo que acho extremamente importante que o astrólogo leve em conta: a pessoa mais aterrorizada pelo destino e mais intimidada pelo que ela vivencia como suas inclinações mais sombrias e mais destrutivas da alma e da vida, é a pessoa na qual o sentimento do ego, o sentimento de "eu mesmo", é o mais fraco. Isso traz consigo certa implicação para o próprio estudioso de astrologia, pois que muitos de nós aprendemos nossa arte por essa simples razão e compartilhamos esse problema com nossa clientes. Uma consciência desse problema comum pode ser imensamente criativa, mas uma inconsciência dele favorece exatamente as Erínias e reforça o temor ao destino.
Quando as Erínias cantam que "o alimento é oferecido a um dos dois, mas não a ambos", elas estão enunciando um dilema comum: ou vivemos aterrorizados pelo destino, pelo fato de que ainda não encontramos nenhum sentido de genuína individualidade, ou repudiamos a própria idéia de destino exatamente pela mesma razão. Assim, o astrólogo não só é conivente com seu cliente, como também com o exacerbado cético, que tem medo da mesma coisa. Assim como o psiquiatra se identifica secretamente com seu louco paciente, o problema do destino nos compromete não só com os que temem o aspecto retaliador da vida, senão também com os que rejeitam qualquer outra coisa que não a autonomia da consciência racional. Embora não esteja certa sobre as ramificações disso, desconfio que ela se deve parcialmente ao fato de que tão amiúde a astrologia se lança sobre o inconsciente, de outra parte à razão pela qual a apaixonada acumulação de estatísticas tornou-se necessária e parte ainda ao fato de que o astrólogo individual se sente quase sempre perseguido pelas pessoas "normais". Ora, não estou insinuando que um forte sentimento de identidade pessoal faça com que o destino desapareça. Não seria tão estúpida a ponto de sugerir tal coisa, nem Newmann o seria, a meu ver. No. entanto, o ato de entrar em acordo com o "meu destino" de uma maneira criativa, e não afetada pelo medo, talvez resida, em grande parte, no sentimento que cada um possui de ser um indivíduo.
Neumann prossegue dizendo:
O macho permanece inferior e à mercê do Feminino que o afronte como um poder do destino... O símbolo de Odin dependurado na árvore do destino é típico deste estágio em que o herói-rei era caracterizado meramente pela aceitação da sorte. . . Essa sorte pode aparecer na forma de uma velha e maternal mulher, que preside o passado e o futuro; ou na forma de uma jovem e fascinante figura, como a alma.
O autor esforça-se para assinalar que, quando ele está se referindo ao "ego masculino", não está com isso falando de homens, mas, ao contrário, aludindo ao centro de consciência tanto nos homens como nas mulheres, que é "masculino" no sentido de que é dinâmico, motivado para a diferenciação. Em resumo, ele se assemelha ao Sol em contraste com as difusas e nubladas profundidades lunares do Inconsciente. Tenho absoluta certeza de que o Sol, astrologicamente considerado, constitui um ponto no horóscopo que talvez seja mais acessível aos homens em geral, porque representa uma motivação masculina, orientada para uma meta; o Sol, todavia, significa a mesma coisa no horóscopo de uma mulher, sendo, além disso, o símbolo da consciência diferenciada do ego em ambos os sexos. Nesse sentido, Neumann não está nem um pouco preocupado com questões "sexológicas", e seria absurdo interpretá-lo assim. Ele está falando sobre um dilema com que se defrontam tanto os homens como as mulheres: o sentimento de impotência e de inutilidade que todos nós experimentamos diante dessas constrangedoras erupções da psique que se abatem sobre nós como o destino, por um lado. Não se pode deixar de ver, por outro lado, implícita nessa passagem uma das raízes arquetípicas daquele terror que com tanta freqüência se insinua nos relacionamentos entre macho e fêmea, nos quais a mulher afigura ser, por projeção ou talvez na realidade, a mensageira do destino para o homem. E este, irado e ameaçado pelas "forças" sobre as quais não tem nenhum controle, tenta, assim como Zeus, declarar proscrito o valor da mulher.
O mistério primordial da tecedura e da fiação tem sido também vivenciado na projeção sobre a Grande Mãe que tece a trama da vida e fia o fio do destino, sem importar se ela aparece como uma Grande Fiandeira ou, como ocorre tão freqüentemente, numa tríade lunar. Não é por acaso que falamos em tecidos do corpo, pois o tecido composto pelo Feminino no cosmo e no útero da mulher é a vida e o destino. E a astrologia, o estudo de um destino governado pelos astros, ensina que ambos começam ao mesmo tempo, no momento temporal do nascimento.
O problema do poder ameaçador que o ego experimenta como uma propriedade do inconsciente não é, conforme tenho dito, uma questão sexológica. E uma questão humana, ao que me parece, e tenho encontrado tanto mulheres que correm de medo de suas próprias profundezas, quanto homens dominados pelo mesmo temor. Não obstante, o medo talvez seja o começo de sabedoria, segundo nos ensina o Velho Testamento, pois esse medo do poder do destino é, no mínimo, um reconhecimento. Estou, portanto, inclinada a questionar se é válido dizer a um cliente que veio em busca de uma leitura de horóscopo, que um mapa astral "apenas" sugere potencialidades que ele poderá superar ou dominar como preferir. Não estou sugerindo que devamos regredir a um nível arcaico, onde o ego retroceda ao terror primitivo e à aceitação passiva do destino que caracteriza tanto as culturas antigas como a criança moderna. Empenhamo-nos durante vários milênios em sermos capazes de fazer algo mais do que isso. Mas a hubris, em compensação, não erradica a imagem arquetípica do destino que reside nas profundezas da psique do cliente e do astrólogo. Tampouco essa atitude poupará o cliente de seu destino.
O destino feminino que estamos investigando constitui, em certo sentido, o paralelo psíquico dos padrões genéticos herdados da linhagem familiar. Ou, num sentido mais amplo, é a imagem arquetípica para os instintos mais primitivos que se contorcem dentro de nós. Esse é o destino de partilha, de fronteiras ou de limites que não podem ser cruzados. É o circulo além do qual a pessoa não pode passar durante a sua existência, sejam quais forem as potencialidades ilimitadas que possa perceber em si mesma, visto que gerações construíram esse círculo pedra sobre pedra. O destino e a hereditariedade, por conseguinte, estão intrinsecamente ligados, e a família representa um dos grandes instrumentos do destino. Mais tarde, vamos examinar melhor essa questão.
Quando vista sob essa luz, Moira é um dos impulsos inatos na psique individual e coletiva e sua função é manter a justiça e a ordem no reino natural dos instintos. Visto que nossos impulsos básicos estão representados, no simbolismo astrológico, pelos planetas, é razoável supor que o antigo princípio retaliador de Moira esteja configurado no horóscopo por um dos planetas, assim como por quaisquer outros signos e casas relacionados com esse planeta. Ademais, é razoável supor que, visto termos proscrito o destino e fingirmos, nos dias de hoje, que ele não existe, sejamos igualmente ignorantes dessa dimensão de seu significado dentro da astrologia. Em certa medida, poderíamos ainda considerar que a imagem que preside o destino retaliador é a imagem de um instinto para fixar fronteiras proscritas dentro de uma pessoa. Moira é a guardiã do direito natural dentro do indivíduo, e ela é tão necessária para o equilíbrio do corpo e da mente quanto outros e mais extrovertidos e transcendentais impulsos.
Acho muito produtivo, na interpretação de símbolos astrológicos, ser por vezes descaradamente não-racional e trabalhar com imagens que esses símbolos evocam, em vez de fazer conceituações ou reduzir a palavras-chave essas antigas e sagradas figuras que por tantos séculos foram percebidas e vivenciadas como deuses. Ainda não sabemos, realmente, o que elas são. É mais aceitável agora, para os propósitos de avaliação e de compreensão coletiva, chamá-las de impulsos, motivações ou desejos arquetípicos. Mas acho que o astrólogo, e também o analista, podem tirar proveito do método de ampliação, de Jung, a fim de se acerarem mais da essência da linguagem astrológica. Poderíamos, inclusive, ir além e visionar a experiência astrológica como o encontro com uma divindade, um numen, em vez de raciocinar em termos de motivações ou desejos. Pois essas coisas não são as mesmas? Talvez nem sempre seja sensato apropriar-se de tudo o que existe dentro de nós como se fosse "meu", quer dizer, propriedade do ego. Nossos impulsos inatos, no final das contas, não estão mais sujeitos à dissecação e ao controle racional, do que os daimones de Platão, que são dados a cada pessoa no nascimento e moldam seu caráter durante toda a existência. Poderia ser importante admitir, particularmente quando estamos lidando com coisas semelhantes ao destino, que existem aspectos de nossas "motivações" que nos ultrapassam, que são transpessoais, independentes, até mesmo infernais ou divinos.
Encontrar determinado planeta em um signo e em uma casa zodiacal é como entrar num templo e encontrar a manifestação de um deus desconhecido. Podemos encontrar essa divindade como uma experiência concreta "exterior" ou por intermédio de uma outra pessoa que é a máscara através da qual o rosto do deus se mostra; através do corpo; através de uma ideologia ou visão intelectual; através de uma atividade criativa; como uma emoção motivadora. Muitas vezes, vá-rias dessas manifestações são vivenciadas juntas, tornando-se difícil ver a unidade entre o que está acontecendo na vida exterior e o que está acontecendo na vida interior. Todavia, o planeta constrói uma ponte sobre o abismo entre o "exterior" e o "interior" e nos fornece uma ligação significativa, pois os deuses vivem nos dois mundos simultaneamente.
Encontrar a personificação de tudo o que até agora investigamos, destilado na imagem de Moira, é encontrar o que é compulsivo e primordial. É um confronto com a morte e o desmembramento, pois Moira quebra o orgulho e a vontade do ego em pedacinhos. Por ser ela imutável, nós é que somos transformados. Ela é mais forte do que os desejos e a determinação do ego, mais forte do que as razões do intelecto, mais forte do que o dever, os princípios e as boas intenções mais forte ainda do que a fé individual. Platão imaginou-a entronizada no centro do universo, com a roca cósmica assentada entre os seus joelhos, enquanto suas filhas, reflexos diferenciados de seu próprio rosto, guardam os limites da lei natural e punem os transgressores com intenso sofrimento. A sabedoria de Moira deve ser encontrada no desespero e na depressão, na inutilidade e na morte. Seu segredo é o que guia e fortalece a pessoa quando ela própria já não consegue mais se sustentar, e aquilo que a mantém atrelada ao seu próprio e único esquema de desenvolvimento.
A necessidade inata de descer do mundo das aparências para a "ligação invisível" e para a personalidade oculta leva ao mundo interior do que quer que seja dado. A necessidade autóctone da psique, seu desejo natural de compreender psicologicamente, assemelhar-se-ia àquilo que Freud chama de instinto de morte e àquilo que Platão introduziu como o desejo pelo Hades... Ele age através da destruição, dissolução, decomposição, separação e dos processos de desintegração necessários tanto à psicologia alquímica quanto à moderna psicanálise
Essa descrição feita por James Hillman sugere que a coisa que guarda as fronteiras circunscritas da natureza também procura conhecer a sua própria fiação: é o meu destino que busca a explicação de si mesmo. Essa deusa do destino, enquanto "serva da Justiça", é, a meu ver, representada com mais ênfase no panteão planetário da astrologia. Dentro do horóscopo, eu diria que aquilo que os gregos conheciam como as Erínias, a face retaliativa de Moira, nós costumamos chamar Plutão.
O Destino e o Feminino, por Liz Greene (2)
Talvez uma das razões por que existe uma inevitável associação entre o destino e o feminino seja a inexorável experiência de nossos corpos mortais. O ventre que nos gera, e a mãe a quem abrimos nossos olhos pela primeira vez, é, no princípio, o Inundo inteiro e o único árbitro da vida e da morte. Enquanto experiência psíquica direta, o pai é, na melhor das hipóteses, uma conjetura, mas a mie é o fato da vida primário e mais real. Nossos corpos estão em harmonia com os corpos de nossas mães durante a gestação que precede qualquer individualidade independente. Se não temos memória do estado intra-uterino e das contorções do parto, nossos corpos tem, e também a psique inconsciente. Tudo que se relaciona com o corpo pertence, pois, ao mundo da mãe — nossa hereditariedade, nossas experiências de dor e prazer físicos e até mesmo nossa morte. Assim como não conseguimos nos lembrar do tempo em que ainda não existíamos, simples ovo no ovário materno, também não conseguimos imaginar o tempo em que deixaremos de existir, como se o lugar de saída e o lugar de regresso fossem o mesmo. O mito sempre ligou o feminino com a terra, com a carne e com os processos de nascimento e de morte. O corpo em que uma pessoa vive seu período de tempo devido provém do corpo da mãe, e essas características e limitações inerentes a nossa herança física são experienciadas como destino: o que está escrito nos hieróglifos do código genético que se estende até eras atrás. O legado físico dos antepassados constitui o destino do corpo e, embora a cirurgia plástica possa modificar o formato de um nariz ou corrigir uma arcada dentária, mesmo assim nos contam que vamos herdar as doenças de nossos pais, suas predisposições à longevidade ou à ausência dela, suas alergias, seus apetites, seus rostos e suas estruturas ósseas.
Assim, o destino é imaginado como feminino porquanto é experienciado no corpo, e as predisposições inerentes ao corpo não podem ser alteradas malgrado a consciência que habita a carne — assim como Zeus não pode, em última análise, alterar Moira. Os impulsos instintivos de uma espécie constituem também o domínio de Moira, pois estes são também inerentes à matéria e, ainda que não sejam exclusivos de uma ou de outra família, são universais no que diz respeito ao género humano. É como se não pudéssemos infringir aquilo que em nós representa a natureza e que pertence à espécie — por mais que o reprimamos ou o alimentemos com cultura. Nesse sentido Freud, malgrado ele próprio, aparece como um dos grandes animadores do destino enquanto instinto, porque foi compelido a reconhecer a força dos instintos como modeladora do destino humano. O instinto de procriar, diferenciado daquilo a que chamamos de amor, existe em todas as espécies vivas e o fato de que opera como uma força do destino pode ser observado nos encontros sexuais compulsivos e nas suas conseqüências que virtualmente pontuam toda vida humana. Não é de se estranhar que os povos nórdicos igualassem o destino aos órgãos genitais. Da mesma forma, o instinto de agressão existe em todos nós e a história da guerra, que eclode, não obstante nossas melhores intenções, é testemunha da "fatalidade" desse instinto.
A alma também é representada como feminina, e a grande obra poética de Dante em louvor à sua Beatriz morta ergue-se como um dos nossos mais impressionantes testemunhos do poder do feminino em afastar o homem da vida mundana e alçá-lo às alturas e profundezas de seu ser interior. Jung tem muita coisa a dizer sobre a alma como anima, a parte feminina subjetiva que pode levar um homem tanto aos tormentos do inferno como aos êxtases do céu, acendendo o fogo de sua vida criativa e individual. Aqui, o destino parece provir de dentro, através das paixões, da imaginação e da incurável aspiração mística. Não importa se é uma mulher de verdade que desempenha esta função na vida de um homem ou não, apesar disso a alma irá empurrá-la na direção do destino dele. Essa alma estabelece limites, também; ela não haverá de permitir que ele voe alto demais e das maldições das histórias de fadas são tarefas altamente ritualizadas. Somente a vontade não pode fazer nada. Até mesmo onde a inteligência serve como um meio de abordagem, ela deve estar associada ao ritmo do tempo e ao auxílio de fatores estranhos e muitas vezes mágicos. Freqüentemente, o socorro vem dessas mesmas ignóbeis fadas, ou de seus lacaios, que lançaram o feitiço antes. Ora é o coração que opera a transformação, assim como o amor da Bela transforma a sua Fera; ora é a passagem do tempo, como é o caso da Bela Adormecida. Outras vezes, o herói deve fazer, desesperadamente, uma longa e cansativa viagem até o fim do mundo, cercado pelas trevas e pelo desespero, a fim de encontrar o objeto milagroso que irá salvar o reino. No entanto, a solução do feitiço ou maldição depende de outras faculdades que não as racionais, e nenhuma solução pode dar certo sem o secreto conluio das fadas ou das próprias parcas. Isso sugere um outro mistério sobre nossa face feminina do destino; embora ela possa se contrapor à omissão ou punir e transgressão da lei natural, ainda assim age nas trevas ocultas para entrar em contato com a vontade alienada do homem, antes que o rompimento aumente demais e se torne premente um desfecho trágico. Os temas dos contos de fadas são mais modestos e aparentemente mais mundanos do que as gloriosas representações teatrais das grandes sagas míticas populares. Todavia, em alguns aspectos, eles têm mais importância para nós por serem mais acessíveis, exuberantes, imaturos e mais próximos da vida comum. E eles sugerem, no ponto onde o mito falha, que seria possível construir uma ponte entre o homem e Moira, se respeito, esforço e ritos propiciatórios adequados forem oferecidos.
Inúmeros exploradores de caminhos inexplorados da psique tentaram entender o fato curioso de que o ser humano, esbarrando de leve nos profundos impulsos subjetivos que representam a sua necessidade, dá ao seu destino um nome e um rosto de mulher. O mais importante desses investigadores é Jung, que escreveu longamente, em vários volumes de suas Obras reunidas, sobre o destino tal como ele o sentiu na sua própria vida e nas vidas de seus pacientes. As vezes, ele se refere ao instinto como uma força compulsiva e dá a impressão de equipará-lo a uma espécie de destino biológico ou natural: o vôo do ganso selvagem é o seu destino, da mesma forma que a erupção da semente em muda, rebento, folha, flor e fruto. Assim também é o "instinto" de individuação, que leva um homem a tornar-se ele mesmo. Destino, natureza e finalidade são aqui uma só e mesma coisa. Meu destino é o que sou, e o que sou é também a razão por que sou e aquilo que me acontece.
Jung também escreveu sobre o espectro do instinto e do arquétipo, o primeiro como o determinante do comportamento físico ou natural, o último como o determinante da percepção e da experiência psíquicas. Ou, expressando de outra forma, a imagem arquetípica — tal como a imagem das três Parcas — representa a experiência ou percepção psíquica do esquema instintivo, encarnado em figuras que são numinosas ou divinas.
Os instintos são equivalentes muito próximos dos arquétipos — tão próximos, na verdade, que existe uma boa razão para supor que os arquétipos sejam as imagens inconscientes dos próprios instintos; noutras palavras, eles são padrões do comportamento instintivo.
Instinto e arquétipo são, portanto, dois pólos do mesmo dinamismo. O instinto acha-se incluído em, ou é a força ativa que se expressa através de todo movimento de cada célula de nossos organismos físicos: a vontade da natureza que governa o desenvolvimento ordenado e inteligente e a perpetuação da vida. Mas o arquétipo, revestido em sua imagem arquetípica, é a experiência psíquica desse instinto, a força ativa que se expressa através de todo movimento esboçado por cada fantasia, por cada sentimento e por cada vôo da alma. Essa imagem que é mais antiga que o mais antigo dos deuses, a face primordial de Moira, é a percepção psíquica da lei imutável, inerente à vida. Somos aquinhoados com nossa sorte, e nada mais. Jung chegou perto de um mistério que o intelecto tem grande dificuldade em compreender: a união do subjetivo com o objetivo, do corpo e da psique, do indivíduo com o mundo, do fato exterior com a imagem subjetiva. Ele fala do arquétipo, por um lado, como uma modalidade herdada de funcionamento, um padrão inato de comportamento semelhante àquele que podemos observar em todos os reinos da natureza. Mas, por outro lado, ele é alguma coisa mais também.
Este aspecto do arquétipo é o aspecto biológico. . . No entanto, o quadro muda imediatamente quando olhado de dentro, isto é, de dentro do domínio da psique subjetiva. Aqui, o arquétipo se apresenta como numinoso, ou seja, aparece como uma experiência de importância fundamental. Sempre que se reveste com os símbolos apropriados, o que nem sempre é o caso, ele coloca a pessoa num estado de possessão, cujas conseqüências podem ser imprevisíveis.
São justamente essas "conseqüências imprevisíveis" que parecem se introduzir na vida como acontecimentos predestinados de fora. Eis então a doença da paralisia, o acidente estranhamente acontecido na hora marcada, o sucesso inesperado, a relação amorosa compulsiva, o ínfimo erro que resulta na subversão de todo um sistema de vida. Todavia, tem-se a impressão de que a fonte desse poder não vem de fora, ou melhor, não unicamente de fora; Moira também se encontra no lado de dentro.
Pode-se ler, na obra de Jung, uma relação cada vez mais amplamente formulada entre o destino e o inconsciente.
"Meu destino" significa uma vontade demoníaca com relação precisamente a esse destino — uma vontade que não coincide necessariamente com a minha própria (a vontade do ego). Quando ela é oposta ao ego, é difícil não sentir um certo "poder" nela, seja ele divino ou diabólico. O homem que se submete ao seu destino chama-o de a vontade de Deus; o homem que trava um desesperado e extenuante combate está mais apto a ver o diabo nele.
Traça-se também uma relação ampliada entre essa "vontade não necessariamente coincidente com a minha própria" e a Individualidade, o arquétipo central da "ordem" que se situa no âmago do desenvolvimento individual. Destino, natureza, matéria, mundo, corpo e inconsciente — são esses os fios entrelaçados que se tecem no tear de Moira, que rege o reino da matéria, da essência e dos impulsos instintivos da psique inconsciente, da qual o ego é um produto da nossa época.
A raiz indo-européia mer, mor, significa "morrer". Dela também provém os termos mors, em latim, e moros ("sorte"), em grego e, possivelmente, Moira, a deusa do destino. As Nornas que se reúnem sob o pó do mundo são personificações familiares do destino, haja vista Cloto, Láquesis e Átropos. Com os celtas, a concepção das Parcas talvez tenha se deslocado para a de matres e matronae, que eram consideradas divinas pelos teutos... Não será possível que ela retroceda à grande imagem da mãe primordial, que era outrora nosso único mundo e que depois se tornou o símbolo do mundo todo?
Sobre as representações simbólicas do arquétipo da Mãe, Jung escreve o seguinte:
Todos estes símbolos podem ter um significado positivo e favorável ou um significado negativo e desfavorável... Vemos um aspecto ambivalente nas deusas do destino. . . Símbolos do mal são a bruxa, o dragão (ou qualquer animal voraz ou rastejante, tal como um grande peixe ou uma serpente), o túmulo, o sarcófago, a água profunda, a morte, os pesadelos e os duendes. . . O lugar da transformação mágica e de renascimento, juntamente com o mundo subterrâneo e seus habitantes, são presididos pela Mãe. No aspecto negativo, o arquétipo da Mãe pode conotar algo secreto, oculto, sombrio; o abismo, o mundo dos mortos, qualquer coisa que devore, seduza ou envenene, isso tudo é terrificante e inevitável como o destino.
Cito Jung literalmente, pois creio que essas passagens são fundamentais para uma compreensão do sentimento de fatalidade ou de compulsividade irracional que tantas vezes acompanha dificuldades emocionais e os acontecimentos que essas erupções ou abalos precipitam. Depressão, apatia e enfermidade talvez sejam máscaras que as Erínias utilizam. desnecessário dizer que a relação de uma pessoa com a própria mãe está, sem dúvida, significativamente associada ao seu próprio sentimento de escolha e de liberdade subjetiva na vida adulta, pois quanto mais magnânima e sinistra é a mãe, mais tememos o destino. A mãe, porém, é também a Mãe, que aqui parece, em parte, encarnar o inconsciente em seu disfarce de "origens", "útero" ou "profundidades desconhecidas". Não há resposta para a discussão sobre se é o homem que formula suas imagens psíquicas de deusa, serpente, oceano e sarcófago, devido à sua vaga memória corporal do mar de águas uterinas, do serpeante cordão umbilical que dá a vida e, no entanto, pode estrangular, da escuridão tumular e das contrações do parto, do bem-estar vital que propicia a amamentação no peito da mãe; ou se experimenta prazer ou terror, alívio ou compulsão, desejo ou repulsa, e exagera uma "mera" experiência biológica com imagens divinas devido à figura arquetípica ou numinosa, da qual a experiência biológica é apenas uma manifestação concreta. Este, é claro, o velho dilema espírito-matéria: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Será que inventamos os deuses porque temos necessidade de investir significado nos caprichos e nas vicissitudes da vida física, ou será que a vida física é vivenciada como intrinsecamente significativa porque os deuses existem? É evidente que não sei responder a essa questão. Jung, certamente, em seus esforços para se expressar com clareza e exatidão, do ponto de vista psicológico, a respeito dessas águas não navegadas, procurou ficar no meio-termo: ambos são aspectos de uma realidade e não podem ser separados. Se o instinto é uma extremidade do espectro que abrange também um nível arquetípico ou "espiritual", então o destino não é somente o destino do corpo, mas da alma também. A experiência do poder e da natureza relacionada com a vida e a morte da mãe individual acha-se associada na psique com a numinosidade de Moira, divina criadora de vida e de morte. Talvez tudo o que podemos dizer é que existe um elo.
Assim, o destino é imaginado como feminino porquanto é experienciado no corpo, e as predisposições inerentes ao corpo não podem ser alteradas malgrado a consciência que habita a carne — assim como Zeus não pode, em última análise, alterar Moira. Os impulsos instintivos de uma espécie constituem também o domínio de Moira, pois estes são também inerentes à matéria e, ainda que não sejam exclusivos de uma ou de outra família, são universais no que diz respeito ao género humano. É como se não pudéssemos infringir aquilo que em nós representa a natureza e que pertence à espécie — por mais que o reprimamos ou o alimentemos com cultura. Nesse sentido Freud, malgrado ele próprio, aparece como um dos grandes animadores do destino enquanto instinto, porque foi compelido a reconhecer a força dos instintos como modeladora do destino humano. O instinto de procriar, diferenciado daquilo a que chamamos de amor, existe em todas as espécies vivas e o fato de que opera como uma força do destino pode ser observado nos encontros sexuais compulsivos e nas suas conseqüências que virtualmente pontuam toda vida humana. Não é de se estranhar que os povos nórdicos igualassem o destino aos órgãos genitais. Da mesma forma, o instinto de agressão existe em todos nós e a história da guerra, que eclode, não obstante nossas melhores intenções, é testemunha da "fatalidade" desse instinto.
A alma também é representada como feminina, e a grande obra poética de Dante em louvor à sua Beatriz morta ergue-se como um dos nossos mais impressionantes testemunhos do poder do feminino em afastar o homem da vida mundana e alçá-lo às alturas e profundezas de seu ser interior. Jung tem muita coisa a dizer sobre a alma como anima, a parte feminina subjetiva que pode levar um homem tanto aos tormentos do inferno como aos êxtases do céu, acendendo o fogo de sua vida criativa e individual. Aqui, o destino parece provir de dentro, através das paixões, da imaginação e da incurável aspiração mística. Não importa se é uma mulher de verdade que desempenha esta função na vida de um homem ou não, apesar disso a alma irá empurrá-la na direção do destino dele. Essa alma estabelece limites, também; ela não haverá de permitir que ele voe alto demais e das maldições das histórias de fadas são tarefas altamente ritualizadas. Somente a vontade não pode fazer nada. Até mesmo onde a inteligência serve como um meio de abordagem, ela deve estar associada ao ritmo do tempo e ao auxílio de fatores estranhos e muitas vezes mágicos. Freqüentemente, o socorro vem dessas mesmas ignóbeis fadas, ou de seus lacaios, que lançaram o feitiço antes. Ora é o coração que opera a transformação, assim como o amor da Bela transforma a sua Fera; ora é a passagem do tempo, como é o caso da Bela Adormecida. Outras vezes, o herói deve fazer, desesperadamente, uma longa e cansativa viagem até o fim do mundo, cercado pelas trevas e pelo desespero, a fim de encontrar o objeto milagroso que irá salvar o reino. No entanto, a solução do feitiço ou maldição depende de outras faculdades que não as racionais, e nenhuma solução pode dar certo sem o secreto conluio das fadas ou das próprias parcas. Isso sugere um outro mistério sobre nossa face feminina do destino; embora ela possa se contrapor à omissão ou punir e transgressão da lei natural, ainda assim age nas trevas ocultas para entrar em contato com a vontade alienada do homem, antes que o rompimento aumente demais e se torne premente um desfecho trágico. Os temas dos contos de fadas são mais modestos e aparentemente mais mundanos do que as gloriosas representações teatrais das grandes sagas míticas populares. Todavia, em alguns aspectos, eles têm mais importância para nós por serem mais acessíveis, exuberantes, imaturos e mais próximos da vida comum. E eles sugerem, no ponto onde o mito falha, que seria possível construir uma ponte entre o homem e Moira, se respeito, esforço e ritos propiciatórios adequados forem oferecidos.
Inúmeros exploradores de caminhos inexplorados da psique tentaram entender o fato curioso de que o ser humano, esbarrando de leve nos profundos impulsos subjetivos que representam a sua necessidade, dá ao seu destino um nome e um rosto de mulher. O mais importante desses investigadores é Jung, que escreveu longamente, em vários volumes de suas Obras reunidas, sobre o destino tal como ele o sentiu na sua própria vida e nas vidas de seus pacientes. As vezes, ele se refere ao instinto como uma força compulsiva e dá a impressão de equipará-lo a uma espécie de destino biológico ou natural: o vôo do ganso selvagem é o seu destino, da mesma forma que a erupção da semente em muda, rebento, folha, flor e fruto. Assim também é o "instinto" de individuação, que leva um homem a tornar-se ele mesmo. Destino, natureza e finalidade são aqui uma só e mesma coisa. Meu destino é o que sou, e o que sou é também a razão por que sou e aquilo que me acontece.
Jung também escreveu sobre o espectro do instinto e do arquétipo, o primeiro como o determinante do comportamento físico ou natural, o último como o determinante da percepção e da experiência psíquicas. Ou, expressando de outra forma, a imagem arquetípica — tal como a imagem das três Parcas — representa a experiência ou percepção psíquica do esquema instintivo, encarnado em figuras que são numinosas ou divinas.
Os instintos são equivalentes muito próximos dos arquétipos — tão próximos, na verdade, que existe uma boa razão para supor que os arquétipos sejam as imagens inconscientes dos próprios instintos; noutras palavras, eles são padrões do comportamento instintivo.
Instinto e arquétipo são, portanto, dois pólos do mesmo dinamismo. O instinto acha-se incluído em, ou é a força ativa que se expressa através de todo movimento de cada célula de nossos organismos físicos: a vontade da natureza que governa o desenvolvimento ordenado e inteligente e a perpetuação da vida. Mas o arquétipo, revestido em sua imagem arquetípica, é a experiência psíquica desse instinto, a força ativa que se expressa através de todo movimento esboçado por cada fantasia, por cada sentimento e por cada vôo da alma. Essa imagem que é mais antiga que o mais antigo dos deuses, a face primordial de Moira, é a percepção psíquica da lei imutável, inerente à vida. Somos aquinhoados com nossa sorte, e nada mais. Jung chegou perto de um mistério que o intelecto tem grande dificuldade em compreender: a união do subjetivo com o objetivo, do corpo e da psique, do indivíduo com o mundo, do fato exterior com a imagem subjetiva. Ele fala do arquétipo, por um lado, como uma modalidade herdada de funcionamento, um padrão inato de comportamento semelhante àquele que podemos observar em todos os reinos da natureza. Mas, por outro lado, ele é alguma coisa mais também.
Este aspecto do arquétipo é o aspecto biológico. . . No entanto, o quadro muda imediatamente quando olhado de dentro, isto é, de dentro do domínio da psique subjetiva. Aqui, o arquétipo se apresenta como numinoso, ou seja, aparece como uma experiência de importância fundamental. Sempre que se reveste com os símbolos apropriados, o que nem sempre é o caso, ele coloca a pessoa num estado de possessão, cujas conseqüências podem ser imprevisíveis.
São justamente essas "conseqüências imprevisíveis" que parecem se introduzir na vida como acontecimentos predestinados de fora. Eis então a doença da paralisia, o acidente estranhamente acontecido na hora marcada, o sucesso inesperado, a relação amorosa compulsiva, o ínfimo erro que resulta na subversão de todo um sistema de vida. Todavia, tem-se a impressão de que a fonte desse poder não vem de fora, ou melhor, não unicamente de fora; Moira também se encontra no lado de dentro.
Pode-se ler, na obra de Jung, uma relação cada vez mais amplamente formulada entre o destino e o inconsciente.
"Meu destino" significa uma vontade demoníaca com relação precisamente a esse destino — uma vontade que não coincide necessariamente com a minha própria (a vontade do ego). Quando ela é oposta ao ego, é difícil não sentir um certo "poder" nela, seja ele divino ou diabólico. O homem que se submete ao seu destino chama-o de a vontade de Deus; o homem que trava um desesperado e extenuante combate está mais apto a ver o diabo nele.
Traça-se também uma relação ampliada entre essa "vontade não necessariamente coincidente com a minha própria" e a Individualidade, o arquétipo central da "ordem" que se situa no âmago do desenvolvimento individual. Destino, natureza, matéria, mundo, corpo e inconsciente — são esses os fios entrelaçados que se tecem no tear de Moira, que rege o reino da matéria, da essência e dos impulsos instintivos da psique inconsciente, da qual o ego é um produto da nossa época.
A raiz indo-européia mer, mor, significa "morrer". Dela também provém os termos mors, em latim, e moros ("sorte"), em grego e, possivelmente, Moira, a deusa do destino. As Nornas que se reúnem sob o pó do mundo são personificações familiares do destino, haja vista Cloto, Láquesis e Átropos. Com os celtas, a concepção das Parcas talvez tenha se deslocado para a de matres e matronae, que eram consideradas divinas pelos teutos... Não será possível que ela retroceda à grande imagem da mãe primordial, que era outrora nosso único mundo e que depois se tornou o símbolo do mundo todo?
Sobre as representações simbólicas do arquétipo da Mãe, Jung escreve o seguinte:
Todos estes símbolos podem ter um significado positivo e favorável ou um significado negativo e desfavorável... Vemos um aspecto ambivalente nas deusas do destino. . . Símbolos do mal são a bruxa, o dragão (ou qualquer animal voraz ou rastejante, tal como um grande peixe ou uma serpente), o túmulo, o sarcófago, a água profunda, a morte, os pesadelos e os duendes. . . O lugar da transformação mágica e de renascimento, juntamente com o mundo subterrâneo e seus habitantes, são presididos pela Mãe. No aspecto negativo, o arquétipo da Mãe pode conotar algo secreto, oculto, sombrio; o abismo, o mundo dos mortos, qualquer coisa que devore, seduza ou envenene, isso tudo é terrificante e inevitável como o destino.
Cito Jung literalmente, pois creio que essas passagens são fundamentais para uma compreensão do sentimento de fatalidade ou de compulsividade irracional que tantas vezes acompanha dificuldades emocionais e os acontecimentos que essas erupções ou abalos precipitam. Depressão, apatia e enfermidade talvez sejam máscaras que as Erínias utilizam. desnecessário dizer que a relação de uma pessoa com a própria mãe está, sem dúvida, significativamente associada ao seu próprio sentimento de escolha e de liberdade subjetiva na vida adulta, pois quanto mais magnânima e sinistra é a mãe, mais tememos o destino. A mãe, porém, é também a Mãe, que aqui parece, em parte, encarnar o inconsciente em seu disfarce de "origens", "útero" ou "profundidades desconhecidas". Não há resposta para a discussão sobre se é o homem que formula suas imagens psíquicas de deusa, serpente, oceano e sarcófago, devido à sua vaga memória corporal do mar de águas uterinas, do serpeante cordão umbilical que dá a vida e, no entanto, pode estrangular, da escuridão tumular e das contrações do parto, do bem-estar vital que propicia a amamentação no peito da mãe; ou se experimenta prazer ou terror, alívio ou compulsão, desejo ou repulsa, e exagera uma "mera" experiência biológica com imagens divinas devido à figura arquetípica ou numinosa, da qual a experiência biológica é apenas uma manifestação concreta. Este, é claro, o velho dilema espírito-matéria: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Será que inventamos os deuses porque temos necessidade de investir significado nos caprichos e nas vicissitudes da vida física, ou será que a vida física é vivenciada como intrinsecamente significativa porque os deuses existem? É evidente que não sei responder a essa questão. Jung, certamente, em seus esforços para se expressar com clareza e exatidão, do ponto de vista psicológico, a respeito dessas águas não navegadas, procurou ficar no meio-termo: ambos são aspectos de uma realidade e não podem ser separados. Se o instinto é uma extremidade do espectro que abrange também um nível arquetípico ou "espiritual", então o destino não é somente o destino do corpo, mas da alma também. A experiência do poder e da natureza relacionada com a vida e a morte da mãe individual acha-se associada na psique com a numinosidade de Moira, divina criadora de vida e de morte. Talvez tudo o que podemos dizer é que existe um elo.
O Destino e o Feminino, por Liz Greene (1)
Das Ewig Weibliche zeiht uns inan.
O eterno feminino nos acusa.
Goethe
"Ela pode ser encontrada nos lugares velhos, ermos e áridos: charnecas e cumes desmatados e nas entradas de grutas. Nem sempre uma, às vezes, ela é tripla, emergindo da névoa ou envolta nela. Banquo, que, na companhia de Macbeth, deparou-se com ela, exclama:
"What are these?
So withered and so wild In their attire,
That look not Iike th'inhabitants o' the earth, And yet are on't? Live you? or are you aught
That man may question? You seem to understand me, By each at once her choppy finger laying
Upon her skinny lips: You should be women, And yet your beards forbid me to interpret That you are so.
... You can look into the seeds of time,
And say which grain will grow and which will not."*
*Quem são estas? Tão esquálidas e rústicas em suas vestes / Que não se parecem com habitantes da Terra, / No entanto, será que o foram? Vocês vivem? Ou perceberam / Que o homem fará perguntas? Vocês parecem me entender,/ Pois cada uma por sua vez levou o dedo gretado / Aos lábios descarnados; Deveriam ser mulheres, / e, no entanto, suas barbas me impedem de / Considerá-las como tais.... Vocês podem examinar o interior das sementes do tempo, / E dizer qual germinará e qual não.
A cortina abre no primeiro ato de Götterdämmerung, de Wagner, entre um silêncio e uma calma sombrios e ai, agachadas sobre o penhasco defronte à caverna que representa ao mesmo tempo o útero e o túmulo, a passagem ascendente para a vida e a passagem descendente para a morte, estio as altas figuras femininas envoltas numa roupagem escura, como que encapuçadas:
"Vamos rodopiar e cantar;
Mas onde, onde amarraremos a corda?"
Filhas de Nyx, a deusa da Noite, ou de Erda, a Mãe Terra, elas são chamadas Moiras ou Erínias ou Nornas ou Hécate de três faces, assim como são três em forma e aspecto as três fases lunares. A promissora fase crescente, a fértil cheia e a sinistra fase minguante da Lua representam, na imagem mítica, os três aspectos da mulher: a solteira, a esposa fértil e a anciã estéril. Cloto tece o fio, Láquesis medem e Átropos corta-o, e os próprios deuses estão limitados por essas três, por terem sido originados da incipiente Mãe Noite, antes que Zeus e Apoio trouxessem dos céus a revelação do eterno e incorruptível espírito humano.
"A roda (do universo) gira sobre os joelhos da Necessidade e, na parte superior de cada circulo, se encontra uma sereia, que gira com eles, entoando uma só nota ou tom. As oito juntas formam um todo harmônico e, em volta, em intervalos iguais, há um outro grupo de três sereias, cada qual sentada no seu trono: do as Parcas, filhas da Necessidade, que vestem túnicas brancas e usam uma coroa na cabeça "
A intricada visão geométrica do cosmo, de Platão, com a Necessidade e as Parcas entronizadas no centro que tudo governa, encontra eco no Prometeu acorrentado, de Esquilo:
"Coro: Quem dirige o leme, então, da Necessidade?
Prometeu: As Parcas de três aspectos, as inesquecíveis Erínias. Coro: Será Zeus, então, mais fraco em seu poderio do que elas? Prometeu: Nem sequer Ele pode escapar àquilo que foi decretado."
E o filósofo Heráclito, nos Fragmentos cósmicos, declara com menos ambigüidade do que o habitual:
"O Sol não ultrapassará seus limites; se o fizer as Erínias, servas da Justiça, o
desmascararão."
O pensamento grego, segundo diz Russell, está repleto da simbologia do destino. É claro que se pode argumentar que esses sentimentos são expressões de um mundo ou de unia visão de mundo arcaicos, mortos há dois mil anos atrás e prolongados durante a época medieval devido à ignorância com relação ao universo natural, e sobre isso estamos mais bem informados hoje em dia. Num certo sentido, isto é verdade, no entanto uma das mais importantes e inquietantes percepções da psicologia profunda é a revelação de que a consciência mítica e indiferenciada de nossos ancestrais, que animava o mundo natural com imagens de deuses e daimones, não faz parte apenas da história cronológica. Ela pertence também à psique do homem moderno e representa uma camada que, embora estratificada pela consciência crescente e pelo hiper-racionalismo dos últimos dois séculos, continua tão forte quanto era há dois milênios ou mesmo há dez milênios atrás. Talvez ela seja até mais forte agora porque sua única voz é o desprezado mundo de sonhos da infinda, e os íncubos e os súcubos da noite que são mais bem esquecidos na clara luz da manhã. Sabemos, a partir de nosso muito mais sofisticado conhecimento do universo físico, que o sol não é um ser "masculino" e que não do as sensacionais Erínias em forma de serpentes entrançadas que o impedem de ultrapassar seus limites. Pelo menos, o ego sabe disso; o que quer dizer que esta é a única maneira de examiná-lo.
A linguagem do mito é ainda, e sempre foi, a expressão íntima da inarticulada alma humana; e se se aprende a ouvi-la com o coração, então não chega a surpreender que Esquilo, Platão e Heráclito sejam vozes eternas e não meras relíquias de uma era morta e primitiva. Talvez agora, mais do que nunca, seja importante ouvir essas visões poéticas da natureza ordenada do universo, pois temos perigosamente nos distanciado delas. A percepção mítica de um universo governado por uma moral imutável, tanto como pela lei física, está viva e atuante no inconsciente, e assim também estão as Erínias, as "servas da Justiça". O destino, nos textos gregos, é retratado em imagens que nos são pertinentes, do ponto de vista psicológico. Na imaginação arcaica, ele é, naturalmente, aquilo que escreve a lei irrevogável do futuro: começos e fins que são os produtos inevitáveis dessas fontes. Esse processo implica um padrão regular de crescimento, em vez de capricho ou ocorrência fortuitos. São só os limites da consciência humana que nos impedem de perceber todas as implicações de um começo, de maneira que somos incapazes de prever o inevitável fim. O texto gnóstico do século II, o Corpus Hermeticum, expressa isso com bela concisão:
"E, portanto, ambas, a Sorte e a Necessidade, estão atadas uma à outra, por inseparável coesão. A primeira delas, Heimarmenê gera o começo de todas as coisas. A Necessidade compele ao fim de tudo que depende desses princípios. Na esteira de ambas vem a Ordem, que é sua tecedura e trama, e a organização do Tempo para a perfeição de todas as coisas. Pois nada existe sem a fusão intima da Ordem."
Estamos tratando aqui de uma espécie muito particular de destino, que na realidade não diz respeito à predestinação, no sentido comum. Esse destino, que os gregos chamavam Moira, é o "servo da justiça": o que contrabalança ou pune os desvios com relação às leis do desenvolvimento natural. Esse destino pune o transgressor dos limites fixados pela Necessidade.
"Os deuses têm suas províncias por concessão impessoal de Láquesis ou Moira. O mundo, de fato, era desde os primeiros tempos considerado como o reino do Destino e da Lei. Necessidade e Justiça — "necessidade" e "dever" — encontram-se juntas nesta noção primária de Ordem — uma noção que para a representação religiosa grega é elementar e enigmática. "
Para apreciarmos o gosto peculiar de Moira, não podemos prescindir da concepção popular de acontecimentos predeterminados que não tem sentido, mas que nos ocorrem de imprevisto. A fórmula famosa "você vai encontrar um estranho alto e moreno", da leitora da sorte do salão de chá ou da seção de astrologia do jornal, não tem muita substância no sentido profundo de uma ordem moral universal que os gregos entendiam por destino. Essa ordem moral difere muito do significado judeu-cristão de bem e mal, pois não se ocupa dos triviais crimes do ser humano contra seus semelhantes. Para a mente grega — e, quem sabe, para alguma camada profunda e esquecida da nossa própria mente — o pior pecado que o homem poderia cometer não era qualquer um daqueles incluídos mais tarde no catálogo dos vícios mortais do cristianismo. Era, sim, hubris, uma palavra que sugere algo que contém arrogância, vigor, nobreza, esforço heróico, falta de humildade perante os deuses e a inevitabilidade de um fim trágico.
"Antes que a filosofia surgisse, os gregos tinham uma teoria ou opinião a respeito do universo, que pode ser chamada de religiosa ou ética. De acordo com essa teoria, cada pessoa e cada coisa possuía seu lugar ou função designados. Isso não depende da sanção de Zeus, pois ele próprio está sujeito ao mesmo tipo de lei que governa os outros. A teoria está relacionada com a idéia de destino ou necessidade. Ela se aplica, com ênfase, aos corpos celestes. Mas onde há vigor, há a tendência de ultrapassar os limites exatos; daí surge a disputa. Alguma espécie de impessoal e superolímpica lei pune hubris e restaura a ordem eterna que o transgressor buscava vilar. "
Quando uma pessoa é atormentada por hubris, ela tenta ultrapassar os limites do destino fixados para si (que é, implicitamente, o destino representado pelas posições dos corpos celestes no nascimento, visto que a mesma lei impessoal rege tanto o micro quanto o macrocosmos). Assim, ela se esforça para tornar-se divina; e nem mesmo os deuses têm permissão para transgredir a lei natural. A essência da tragédia grega reside no dilema de hubris, que é, ao mesmo tempo, o grande dom do ser humano e seu grande crime. Pois, ao opor-se aos seus limites predestinados, ela dá expressão a um destino heróico, ainda que pela própria natureza dessa tentativa heróica ela seja castigada pelas Erínias.
Os temas da lei natural e da transgressão dos limite; impostos pelo destino poderiam encher, e realmente enchem, volumes de drama, poesia e ficção, sem falar da filosofia. Parece que nós, criaturas humanas curiosas, sempre estivemos preocupados com a difícil questão de saber qual o nosso papel no cosmo: somos predestinados, ou somos livres? Ou estamos fadados a procurar por nossa liberdade, apenas para fracassar? Será melhor, como fizeram Édipo e Prometeu, lutar até os limites extremos de que se é capaz, mesmo que isso provoque um fim trágico, ou será mais sensato viver moderadamente, portar-se com humildade diante dos deuses e morrer com tranqüilidade em seu próprio leito, sem jamais ter provado a glória ou o terror dessa imperdoável transgressão? É evidente que poderia me estender por milhares de páginas sobre este tema, que é o que a maioria dos filósofos fazem. Já que não sou filósofa, em vez disso, vou concentrar minha atenção sobre o fato interessante de que as "servas da Justiça", quer se as encontre na mitologia ou na poesia, são sempre do gênero feminino.
(continua...)
O eterno feminino nos acusa.
Goethe
"Ela pode ser encontrada nos lugares velhos, ermos e áridos: charnecas e cumes desmatados e nas entradas de grutas. Nem sempre uma, às vezes, ela é tripla, emergindo da névoa ou envolta nela. Banquo, que, na companhia de Macbeth, deparou-se com ela, exclama:
"What are these?
So withered and so wild In their attire,
That look not Iike th'inhabitants o' the earth, And yet are on't? Live you? or are you aught
That man may question? You seem to understand me, By each at once her choppy finger laying
Upon her skinny lips: You should be women, And yet your beards forbid me to interpret That you are so.
... You can look into the seeds of time,
And say which grain will grow and which will not."*
*Quem são estas? Tão esquálidas e rústicas em suas vestes / Que não se parecem com habitantes da Terra, / No entanto, será que o foram? Vocês vivem? Ou perceberam / Que o homem fará perguntas? Vocês parecem me entender,/ Pois cada uma por sua vez levou o dedo gretado / Aos lábios descarnados; Deveriam ser mulheres, / e, no entanto, suas barbas me impedem de / Considerá-las como tais.... Vocês podem examinar o interior das sementes do tempo, / E dizer qual germinará e qual não.
A cortina abre no primeiro ato de Götterdämmerung, de Wagner, entre um silêncio e uma calma sombrios e ai, agachadas sobre o penhasco defronte à caverna que representa ao mesmo tempo o útero e o túmulo, a passagem ascendente para a vida e a passagem descendente para a morte, estio as altas figuras femininas envoltas numa roupagem escura, como que encapuçadas:
"Vamos rodopiar e cantar;
Mas onde, onde amarraremos a corda?"
Filhas de Nyx, a deusa da Noite, ou de Erda, a Mãe Terra, elas são chamadas Moiras ou Erínias ou Nornas ou Hécate de três faces, assim como são três em forma e aspecto as três fases lunares. A promissora fase crescente, a fértil cheia e a sinistra fase minguante da Lua representam, na imagem mítica, os três aspectos da mulher: a solteira, a esposa fértil e a anciã estéril. Cloto tece o fio, Láquesis medem e Átropos corta-o, e os próprios deuses estão limitados por essas três, por terem sido originados da incipiente Mãe Noite, antes que Zeus e Apoio trouxessem dos céus a revelação do eterno e incorruptível espírito humano.
"A roda (do universo) gira sobre os joelhos da Necessidade e, na parte superior de cada circulo, se encontra uma sereia, que gira com eles, entoando uma só nota ou tom. As oito juntas formam um todo harmônico e, em volta, em intervalos iguais, há um outro grupo de três sereias, cada qual sentada no seu trono: do as Parcas, filhas da Necessidade, que vestem túnicas brancas e usam uma coroa na cabeça "
A intricada visão geométrica do cosmo, de Platão, com a Necessidade e as Parcas entronizadas no centro que tudo governa, encontra eco no Prometeu acorrentado, de Esquilo:
"Coro: Quem dirige o leme, então, da Necessidade?
Prometeu: As Parcas de três aspectos, as inesquecíveis Erínias. Coro: Será Zeus, então, mais fraco em seu poderio do que elas? Prometeu: Nem sequer Ele pode escapar àquilo que foi decretado."
E o filósofo Heráclito, nos Fragmentos cósmicos, declara com menos ambigüidade do que o habitual:
"O Sol não ultrapassará seus limites; se o fizer as Erínias, servas da Justiça, o
desmascararão."
O pensamento grego, segundo diz Russell, está repleto da simbologia do destino. É claro que se pode argumentar que esses sentimentos são expressões de um mundo ou de unia visão de mundo arcaicos, mortos há dois mil anos atrás e prolongados durante a época medieval devido à ignorância com relação ao universo natural, e sobre isso estamos mais bem informados hoje em dia. Num certo sentido, isto é verdade, no entanto uma das mais importantes e inquietantes percepções da psicologia profunda é a revelação de que a consciência mítica e indiferenciada de nossos ancestrais, que animava o mundo natural com imagens de deuses e daimones, não faz parte apenas da história cronológica. Ela pertence também à psique do homem moderno e representa uma camada que, embora estratificada pela consciência crescente e pelo hiper-racionalismo dos últimos dois séculos, continua tão forte quanto era há dois milênios ou mesmo há dez milênios atrás. Talvez ela seja até mais forte agora porque sua única voz é o desprezado mundo de sonhos da infinda, e os íncubos e os súcubos da noite que são mais bem esquecidos na clara luz da manhã. Sabemos, a partir de nosso muito mais sofisticado conhecimento do universo físico, que o sol não é um ser "masculino" e que não do as sensacionais Erínias em forma de serpentes entrançadas que o impedem de ultrapassar seus limites. Pelo menos, o ego sabe disso; o que quer dizer que esta é a única maneira de examiná-lo.
A linguagem do mito é ainda, e sempre foi, a expressão íntima da inarticulada alma humana; e se se aprende a ouvi-la com o coração, então não chega a surpreender que Esquilo, Platão e Heráclito sejam vozes eternas e não meras relíquias de uma era morta e primitiva. Talvez agora, mais do que nunca, seja importante ouvir essas visões poéticas da natureza ordenada do universo, pois temos perigosamente nos distanciado delas. A percepção mítica de um universo governado por uma moral imutável, tanto como pela lei física, está viva e atuante no inconsciente, e assim também estão as Erínias, as "servas da Justiça". O destino, nos textos gregos, é retratado em imagens que nos são pertinentes, do ponto de vista psicológico. Na imaginação arcaica, ele é, naturalmente, aquilo que escreve a lei irrevogável do futuro: começos e fins que são os produtos inevitáveis dessas fontes. Esse processo implica um padrão regular de crescimento, em vez de capricho ou ocorrência fortuitos. São só os limites da consciência humana que nos impedem de perceber todas as implicações de um começo, de maneira que somos incapazes de prever o inevitável fim. O texto gnóstico do século II, o Corpus Hermeticum, expressa isso com bela concisão:
"E, portanto, ambas, a Sorte e a Necessidade, estão atadas uma à outra, por inseparável coesão. A primeira delas, Heimarmenê gera o começo de todas as coisas. A Necessidade compele ao fim de tudo que depende desses princípios. Na esteira de ambas vem a Ordem, que é sua tecedura e trama, e a organização do Tempo para a perfeição de todas as coisas. Pois nada existe sem a fusão intima da Ordem."
Estamos tratando aqui de uma espécie muito particular de destino, que na realidade não diz respeito à predestinação, no sentido comum. Esse destino, que os gregos chamavam Moira, é o "servo da justiça": o que contrabalança ou pune os desvios com relação às leis do desenvolvimento natural. Esse destino pune o transgressor dos limites fixados pela Necessidade.
"Os deuses têm suas províncias por concessão impessoal de Láquesis ou Moira. O mundo, de fato, era desde os primeiros tempos considerado como o reino do Destino e da Lei. Necessidade e Justiça — "necessidade" e "dever" — encontram-se juntas nesta noção primária de Ordem — uma noção que para a representação religiosa grega é elementar e enigmática. "
Para apreciarmos o gosto peculiar de Moira, não podemos prescindir da concepção popular de acontecimentos predeterminados que não tem sentido, mas que nos ocorrem de imprevisto. A fórmula famosa "você vai encontrar um estranho alto e moreno", da leitora da sorte do salão de chá ou da seção de astrologia do jornal, não tem muita substância no sentido profundo de uma ordem moral universal que os gregos entendiam por destino. Essa ordem moral difere muito do significado judeu-cristão de bem e mal, pois não se ocupa dos triviais crimes do ser humano contra seus semelhantes. Para a mente grega — e, quem sabe, para alguma camada profunda e esquecida da nossa própria mente — o pior pecado que o homem poderia cometer não era qualquer um daqueles incluídos mais tarde no catálogo dos vícios mortais do cristianismo. Era, sim, hubris, uma palavra que sugere algo que contém arrogância, vigor, nobreza, esforço heróico, falta de humildade perante os deuses e a inevitabilidade de um fim trágico.
"Antes que a filosofia surgisse, os gregos tinham uma teoria ou opinião a respeito do universo, que pode ser chamada de religiosa ou ética. De acordo com essa teoria, cada pessoa e cada coisa possuía seu lugar ou função designados. Isso não depende da sanção de Zeus, pois ele próprio está sujeito ao mesmo tipo de lei que governa os outros. A teoria está relacionada com a idéia de destino ou necessidade. Ela se aplica, com ênfase, aos corpos celestes. Mas onde há vigor, há a tendência de ultrapassar os limites exatos; daí surge a disputa. Alguma espécie de impessoal e superolímpica lei pune hubris e restaura a ordem eterna que o transgressor buscava vilar. "
Quando uma pessoa é atormentada por hubris, ela tenta ultrapassar os limites do destino fixados para si (que é, implicitamente, o destino representado pelas posições dos corpos celestes no nascimento, visto que a mesma lei impessoal rege tanto o micro quanto o macrocosmos). Assim, ela se esforça para tornar-se divina; e nem mesmo os deuses têm permissão para transgredir a lei natural. A essência da tragédia grega reside no dilema de hubris, que é, ao mesmo tempo, o grande dom do ser humano e seu grande crime. Pois, ao opor-se aos seus limites predestinados, ela dá expressão a um destino heróico, ainda que pela própria natureza dessa tentativa heróica ela seja castigada pelas Erínias.
Os temas da lei natural e da transgressão dos limite; impostos pelo destino poderiam encher, e realmente enchem, volumes de drama, poesia e ficção, sem falar da filosofia. Parece que nós, criaturas humanas curiosas, sempre estivemos preocupados com a difícil questão de saber qual o nosso papel no cosmo: somos predestinados, ou somos livres? Ou estamos fadados a procurar por nossa liberdade, apenas para fracassar? Será melhor, como fizeram Édipo e Prometeu, lutar até os limites extremos de que se é capaz, mesmo que isso provoque um fim trágico, ou será mais sensato viver moderadamente, portar-se com humildade diante dos deuses e morrer com tranqüilidade em seu próprio leito, sem jamais ter provado a glória ou o terror dessa imperdoável transgressão? É evidente que poderia me estender por milhares de páginas sobre este tema, que é o que a maioria dos filósofos fazem. Já que não sou filósofa, em vez disso, vou concentrar minha atenção sobre o fato interessante de que as "servas da Justiça", quer se as encontre na mitologia ou na poesia, são sempre do gênero feminino.
(continua...)
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Liz Greene: Tétis e Aquiles
Tétis era a grande deusa do mar e dominava tudo o que se movia em suas profundezas. Mas chegou o momento de ela se casar e Zeus, o rei dos deuses, tinha ouvido uma profecia prevendo que, se Tétis desposasse um deus, teria um filho maior do que o próprio Zeus. Preocupado com a possibilidade de perder sua posição, Zeus casou a deusa do mar com um mortal chamado Peleu. Esse casamento misto não foi mal, e os dois se acomodaram com relativa harmonia - embora Peleu às vezes se ressentisse dos poderes sobrenaturais da mulher e, vez por outra, Tétis julgasse haver-se casado com um homem abaixo de sua posição.
Com o tempo, Tétis teve um filho, a quem deu o nome de Aquiles. Como o pai dele era mortal, Aquiles era um menino mortal, que teria seu tempo na terra ditado pelas Parcas, como todos os seres mortais. Mas Tétis não estava satisfeita com essa perspectiva; sendo imortal, não queria permanecer eternamente jovem, vendo seu filho envelhecer e morrer. Assim, em segredo, levou o recém-nascido até o rio Estige, em cujas águas residia o dom da imortalidade. Segurou o menino por um dos calcanhares e o mergulhou na água, acreditando que com isso tinha tornado-o imortal. Mas o calcanhar pelo qual ela o segurou não foi tocado pelas águas do Estige, e Aquiles ficou vulnerável nesse ponto.
Ao chegar à idade adulta e combater na Guerra de Tróia, Aquiles foi mortalmente ferido ao ser atingido por uma flecha no calcanhar. Embora ele tenha conquistado grande glória e viesse a ser lembrado para sempre, Tétis não conseguiu enganar as Parcas nem transformar o que era humano na matéria de que são feitos os deuses.
COMENTÁRIO
Inconscientemente, muitos pais desejam que seus filhos sejam divinos – ainda que, em gerai, não tão literalmente quanto Tétis. Não temos a expectativa de que nossos filhos vivam eternamente, mas podemos querer que sejam melhores do que as outras crianças, mais bonitos, mais talentosos, mais brilhantes, únicos e especiais, e livres das limitações corriqueiras da vida. Nenhuma criança consegue ficar à altura dessas expectativas inconscientes, e qualquer uma pode sofrer por ter sua humanidade comum relegada a segundo plano nos enormes esforços dos pais para produzir algo sobre-humano. Também podemos ter a esperança de que nossos filhos nos redimam de algum modo -que consertem o que estragamos, ou vivam aquilo que nos foi negado. E possível que façamos sacrifícios, na esperança de que os filhos dêem sentido à nossa vida, em vez de permitirmos que vivam a deles. E quando eles tropeçam e caem, como acontece com todos os seres humanos, ou quando demonstram uma gratidão insuficiente por nossos esforços, talvez nos sintamos ofendidos e decepcionados. Pode-se ver tudo isso na história de Tétis e Aquiles.
Tétis, a deusa-mãe que quer que o filho tenha a divindade dela, em vez de ser mortal como o pai, é também a imagem de uma certa atitude perante a maternidade. Quando uma mãe deseja possuir seu filho por inteiro e não se dispõe ou não consegue partilhar o amor da criança, muitos problemas podem surgir. O casamento de Tétis e Peleu, cuja prole foi Aquiles, retrata um casamento em que há um desequilíbrio entre os pais. Tétis sente-se superior a Peleu e espera que o filho se pareça com ela. Esse é um dilema bastante comum: às vezes fantasiamos secretamente a identidade de um filho, em vez de reconhecer que duas pessoas contribuíram para sua existência. Isso pode acontecer quando 0 casamento é infeliz ou não traz realização. O pai também pode idealizar as filhas, como Tétis fez com o filho, e esforçar-se inconscientemente para separar mãe e filha, para que nenhuma pessoa de fora venha prejudicar a união do laço pai-filha.
Todos esses dilemas da função de pai e mãe, em vez de patológicos, são meramente humanos. Mas os mitos são sobre seres humanos, mesmo quando seus personagens principais são deuses. De que maneira lidamos com essas questões da expectativa e da possessividade exageradas? Quando trazemos filhos ao mundo, devemos a eles imparcialidade e justiça na maneira como os tratamos afetivamente. Se tivermos consciência de que estamos esperando demais de nossos filhos, poderemos demonstrar-lhes amor mesmo quando eles não conseguirem o que esperamos, e poderemos também incentivá-los a seguir o caminho ditado por seu coração e sua alma, e não o que nós gostaríamos de ter seguido. Os sentimentos conhecidos e refreados não provocam destruição. Os inconscientes, que resultam em comportamentos inconscientes, podem causar grandes danosa um filho. A vida dos pais nunca é perfeita e todos acalentamos esperanças pouco realistas a respeito de nossos filhos. Isso é humano e natural. Mas eles não são divinos, nem tampouco estão na terra para nossa glorificação ou para a redenção de nossa própria vida. No casamento de Tétis e Peleu, criado pela sabedoria de Zeus, há uma imagem profunda da mescla de humano e divino que está por trás da origem de todo ser humano. Toda criança partilha de ambos. Se pudermos lembrar-nos disso e permitir que nossos filhos sejam os seres humanos que são, esse antigo mito poderá ajudar-nos a sermos pais mais sensatos e mais generosos.
Extraído de: Uma Viagem através dos Mitos, de Liz Greene & Juliet Sharman-Burke
Com o tempo, Tétis teve um filho, a quem deu o nome de Aquiles. Como o pai dele era mortal, Aquiles era um menino mortal, que teria seu tempo na terra ditado pelas Parcas, como todos os seres mortais. Mas Tétis não estava satisfeita com essa perspectiva; sendo imortal, não queria permanecer eternamente jovem, vendo seu filho envelhecer e morrer. Assim, em segredo, levou o recém-nascido até o rio Estige, em cujas águas residia o dom da imortalidade. Segurou o menino por um dos calcanhares e o mergulhou na água, acreditando que com isso tinha tornado-o imortal. Mas o calcanhar pelo qual ela o segurou não foi tocado pelas águas do Estige, e Aquiles ficou vulnerável nesse ponto.
Ao chegar à idade adulta e combater na Guerra de Tróia, Aquiles foi mortalmente ferido ao ser atingido por uma flecha no calcanhar. Embora ele tenha conquistado grande glória e viesse a ser lembrado para sempre, Tétis não conseguiu enganar as Parcas nem transformar o que era humano na matéria de que são feitos os deuses.
COMENTÁRIO
Inconscientemente, muitos pais desejam que seus filhos sejam divinos – ainda que, em gerai, não tão literalmente quanto Tétis. Não temos a expectativa de que nossos filhos vivam eternamente, mas podemos querer que sejam melhores do que as outras crianças, mais bonitos, mais talentosos, mais brilhantes, únicos e especiais, e livres das limitações corriqueiras da vida. Nenhuma criança consegue ficar à altura dessas expectativas inconscientes, e qualquer uma pode sofrer por ter sua humanidade comum relegada a segundo plano nos enormes esforços dos pais para produzir algo sobre-humano. Também podemos ter a esperança de que nossos filhos nos redimam de algum modo -que consertem o que estragamos, ou vivam aquilo que nos foi negado. E possível que façamos sacrifícios, na esperança de que os filhos dêem sentido à nossa vida, em vez de permitirmos que vivam a deles. E quando eles tropeçam e caem, como acontece com todos os seres humanos, ou quando demonstram uma gratidão insuficiente por nossos esforços, talvez nos sintamos ofendidos e decepcionados. Pode-se ver tudo isso na história de Tétis e Aquiles.
Tétis, a deusa-mãe que quer que o filho tenha a divindade dela, em vez de ser mortal como o pai, é também a imagem de uma certa atitude perante a maternidade. Quando uma mãe deseja possuir seu filho por inteiro e não se dispõe ou não consegue partilhar o amor da criança, muitos problemas podem surgir. O casamento de Tétis e Peleu, cuja prole foi Aquiles, retrata um casamento em que há um desequilíbrio entre os pais. Tétis sente-se superior a Peleu e espera que o filho se pareça com ela. Esse é um dilema bastante comum: às vezes fantasiamos secretamente a identidade de um filho, em vez de reconhecer que duas pessoas contribuíram para sua existência. Isso pode acontecer quando 0 casamento é infeliz ou não traz realização. O pai também pode idealizar as filhas, como Tétis fez com o filho, e esforçar-se inconscientemente para separar mãe e filha, para que nenhuma pessoa de fora venha prejudicar a união do laço pai-filha.
Todos esses dilemas da função de pai e mãe, em vez de patológicos, são meramente humanos. Mas os mitos são sobre seres humanos, mesmo quando seus personagens principais são deuses. De que maneira lidamos com essas questões da expectativa e da possessividade exageradas? Quando trazemos filhos ao mundo, devemos a eles imparcialidade e justiça na maneira como os tratamos afetivamente. Se tivermos consciência de que estamos esperando demais de nossos filhos, poderemos demonstrar-lhes amor mesmo quando eles não conseguirem o que esperamos, e poderemos também incentivá-los a seguir o caminho ditado por seu coração e sua alma, e não o que nós gostaríamos de ter seguido. Os sentimentos conhecidos e refreados não provocam destruição. Os inconscientes, que resultam em comportamentos inconscientes, podem causar grandes danosa um filho. A vida dos pais nunca é perfeita e todos acalentamos esperanças pouco realistas a respeito de nossos filhos. Isso é humano e natural. Mas eles não são divinos, nem tampouco estão na terra para nossa glorificação ou para a redenção de nossa própria vida. No casamento de Tétis e Peleu, criado pela sabedoria de Zeus, há uma imagem profunda da mescla de humano e divino que está por trás da origem de todo ser humano. Toda criança partilha de ambos. Se pudermos lembrar-nos disso e permitir que nossos filhos sejam os seres humanos que são, esse antigo mito poderá ajudar-nos a sermos pais mais sensatos e mais generosos.
Extraído de: Uma Viagem através dos Mitos, de Liz Greene & Juliet Sharman-Burke
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